Um tempo em que a cidade surgia, cavaleiros apressados pra lá e pra cá, a Avenida Iporá e nela figuras ainda lembradas pelo autor. Paulo Afonso Ribeiro Barbosa relembra Chiquinho Piauí, Cirilo Damasceno, Rosinha do Cirilo, Gildásio Coutinho, Coriolano Pereira Passos, mais conhecido como Tito e outros. VAMOS REVIVER A AMORINÓPOLIS NA METADE DO SÉCULO PASSADO com o texto nostálgico de Paulo Afonso Ribeiro Barbosa.
CAPÍTULO I
QUE TRATA DA HISTÓRIA DA CIDADE DE AMORINÓPOLIS, ANTIGA CAMPO LIMPO, NA METADE DO SÉCULO XX
A CIDADE
Na metade dos anos cinquenta do século passado, quando a minha família chegou a Amorinópolis, o pequeno povoado chamava-se Campo Limpo e ainda era distrito de Iporá. A cidade estava nascendo, com suas ruas empoeiradas e movimentadas. Nos arredores, abriam-se lavouras para todo lado, principalmente nas férteis terras do vale da Jacuba. As matas eram derrubadas com grande euforia ao som repicante dos machados, acompanhado do gemido das duplas que os manejavam ao redor de troncos com mais de metro de diâmetro. O vale da Santa Marta, com cerrados e campos, de manejo mais fácil, havia sido desbravado primeiro. Carros de bois transportando madeiras de lei, lenha e cereais, cantavam seus cantos tristes nas ruas alegres da cidade que ainda era criança. Cavaleiros apressados passavam pra lá e pra cá pelas ruas do vilarejo e, em toda casa de comércio, havia um poste fincado na porta para que pudessem amarrar os cavalos e as pessoas irem tranqüilas cuidar de suas compras. Dentro dos estabelecimentos comerciais, sempre aguardava um pote de água fresca e um banco de madeira, para amenizar o calor e o cansaço do pessoal que vinha da zona rural. Não existiam mais que dois ou três carros na cidade. Predominavam os cavalos e, depois, raras bicicletas.
Naquele tempo, a cidade era só poeira, com gente para todo lado. Numa das esquinas da rua principal, que se chamava Avenida Iporá, tinha o quiosque de madeira de um caboclo batalhador, de pouco mais de um metro e meio de altura, cheio de filhos, chamado Chiquinho Piauí, conhecido também como Chiquinho Lamparina. Não era o da Casa Piauí. Era outro. Na praça, a casa mais bonita era a do Cirilo Damasceno, casado com a dona Rosinha do Cirilo, a qual gostava de usar colares grossos e grandes brincos de ouro. O Gildásio Coutinho, que era rapaz novo, mas não muito novo mais, era o gerente da Casa Barbosa e já era a pessoa mais querida da cidade. O Coriolano Pereira Passos, mais conhecido como Tito, depois marido da Margarida, era solteiro e trabalhava na loja do Romão. Seu Zeíco da dona Vergínia era o melhor pedreiro. Dona Lélia era uma das pessoas mais importantes, porque era a diretora do grupo escolar. Seu Evaristo tinha o hotel mais concorrido, que ocupava quase meio quarteirão. Dona Terezinha, filha do seu Evaristo, hoje minha sogra, foi a primeira funcionária do Correio, que atendia na casa dela mesmo, na avenida de baixo, para o lado da Jacuba. O seu Zé Lopes já tocava açougue. O sanfoneiro Dozim animava os bailes. O Zé Bicudo tinha uma casa de mulher-dama ali perto de onde foi o ginásio, trabalhando com ele a Pretinha e a Branquinha. Depois, quando essa casa de assistência aos necessitados se mudou para a saída de Rio Verde, na avenida da igreja católica, passaram a reinar a Nenzinha e a Mundica. O Frei Henrique, que morava em Iporá, era o padre mais famoso e bravo da região, cabo eleitoral forte do Manoel Antônio. O Dominguinho já era daquele jeitinho, magro, trabalhador e sempre alegre. O João dos Santos Teodoro, mais conhecido como Joãozinho Perna-Torta ou João Manco, tinha o melhor armazém da cidade e era o dono do time de futebol, que contava em seu plantel com o João Goiaba, Dominguinho, Heleno, Preto Gouveia, Dos Reis, o próprio João Perna-Torta e outros. Mais tarde apareceu por lá o Tatão, um sujeito do Rio, que gostava muito de futebol também e passou a comandar o time, juntando-se a ele o Elias Mineiro. O João Leão passou a ser o árbitro oficial dos jogos de futebol da cidade e a meninada gostava, porque ele entrava em campo para apitar com uma peixeira na cintura, denominada por ele de ‘Catarina’. O Sebastião Fiico passou a ser o cartola oficial também. A cidade era viva, era dinâmica, era alegre.
Campo Limpo tinha, de fato, uma vida bastante agitada para aquela época. Parecia com as cidades do oeste americano do século dezenove, que a gente vê em filmes de faroeste. Voltei a ver esse tipo de cidade recentemente, em Rondônia. Havia bares movimentados, com alto-falantes tocando músicas alegres, tipo guarânias e outras músicas sertanejas. O comércio era farto, dentro das limitações da época, com lojas, armazéns, açougues, cerealistas, máquinas de arroz, farmácias e quiosques vendendo frutas e verduras.
Aos sábados, o pessoal das fazendas ia a cavalo fazer compras na cidade, aproveitando para levar parte de suas produções para vender, principalmente ovos embrulhados em palhas de milho e agasalhados em capangas de pano grosso tecido na fazenda mesmo; frangos peados pelos pés e pendurados de cabeça para baixo na garupa do animal; guarirobas atreladas de duas a duas, jogadas por baixo dos frangos; abóboras, cambuquira, manteiga de leite batida na fazenda e lavada com água da bica e por aí afora. Os produtos eram oferecidos de porta em porta e, em contrapartida, conseguia-se o dinheiro para levar para casa o açúcar, o sal, algum paninho de fazer roupa, botão, réco ou zíper, alfinete de gancho, alfinete de pressão, alguma renda para a roupa das mulheres e assim por diante. Os sábados eram, portanto, dias de festa, de rever amigos, de chupar picolé, de comer rosca melada com calda de açúcar na padaria e, para alguns, dia de tomar uma boa cachaça Bom Jardim ou Saci, amaciada com uma Níger meio quente no bar do Fiicão ou do Neném Mumbuca.
A praça ainda não era praça, era o largo, onde a meninada jogava futebol à tarde e onde se montava, todos os anos, o rancho-alegre, na época da festa da padroeira da cidade, para estragar as nossas peladas. Ou então aparecia um bom circo de tourada ou de palhaço, onde se apresentavam esquetes e violeiros memoráveis. Vários artistas que eram ou se tornaram famosos se apresentaram em Campo Limpo naquela época, a exemplo de Tunico e Tinoco, Irmãs Galvão, Duo Siriema e um bocado deles mais. O circo Transcontinental, dos Irmãos Portugal, famoso até hoje no Brasil, também esteve por lá, com palhaços, feras e tudo mais. Encantou a população e, depois disso, todo jovem da cidade sonhava em ser artista de circo. Foi o maior sucesso que Campo Limpo presenciou, naquela época. Os parques de diversões também ocupavam a praça de vez em quando, com suas gangorras, balanços tipo canoinha, casinhas numeradas para o coelho entrar, os alto- falantes tocando canções apaixonadas, onde os moços e as moças aproveitavam e ofereciam músicas uns para os outros, do tipo: “alguém oferece a alguém e esse alguém sabe quem”.
Mais tarde, quando o João Maranhão foi prefeito, ele construiu meio-fio em torno da praça e uma cisterna bem no centro. Parece que tinha a idéia de fazer um jardim ali e molhar as plantas com a água dessa cisterna, mas isto nunca foi feito. Porém, o largo, apesar de não ter praticamente nada, era o ponto mais importante da cidade e em torno dele se instalaram os melhores bares, pensões, lojas, a igreja católica, mais tarde a igreja pentecostal dirigida pelo pastor Bróia. Como não havia luz elétrica, era ali que os rapazes se reuniam à noite para bater papo, para jogar conversa fora e esperar chegar a hora de dormir, na escuridão das noites ou sob o luar que parecia iluminar melhor Campo Limpo que qualquer outro lugar do mundo. E o largo só foi virar praça mesmo nos anos setenta, quando o João dos Santos Teodoro, o famoso Joãozinho Perna-Torta do início de Campo Limpo, a transformou no mais belo espaço de lazer das cidades pequenas de todo o Brasil. Pode até ser que nem todos pensem assim, mas essa é minha opinião. E olhe que, por força de minha profissão, devo conhecer bem umas quinhentas cidades dessas pelo Brasil afora. Meus filhos, com certeza, vão me dar razão, porque passaram a infância curtindo as alegrias de passear na praça com minha mãe, na bela praça feita pelo meu amigo João Perna-Torta. Ele hoje está, seguramente, alegrando o jardim dos abençoados, ao lado do Deus pai.
No canto de baixo da praça, em frente ao bar do Fiicão, quando a praça ainda era só o largo, tinha um pé de macaúba bem alto, imponente e belo. Era o símbolo daquela praça. Nas nossas noites de boemia, costumávamos cantar por ali: Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde nosso amor nasceu? / Tinha um coqueiro do lado / Que coitado de saudade / Já morreu. E não é que arrancaram a macaúba… Da mesma forma, havia uma árvore muito frondosa no fim da rua principal, na saída para Rio Verde, que marcava exatamente o meio da avenida. Foi por ela que o topógrafo que demarcou as ruas de Campo Limpo se balizou para marcar o centro da avenida principal. Infelizmente arrancaram a macaúba e a árvore frondosa do fim da rua. Não existem mais. Campo Limpo ficou mais triste, depois disso.
NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA PUBLICAREMOS MAIS UMA PARTE DO LIVRO