Não é de hoje que ouvimos pelos meios de comunicações e na boca de populares, de economistas e sociólogos leigos de plantão, de consultores financeiros de olho na fatia do dinheiro público, de mercadores de educação e da saúde e até dos “Analistas de Bagé ” que os governantes precisam mudar de estratégia para deixar de fazer gastos em seus estados. Ouvimos tanto que a sociedade, ao longo do tempo, começa a repetir de maneira uníssona estes argumentos e se dedicam a reproduzir discursos contra a classe trabalhadora, tais como: “Ah! professores não trabalham, só dão aulas”; ou: “Ah, se estivéssemos pagando pelo acesso a saúde as coisas seriam diferentes”; ou ainda, “Ah! O ESTADO está muito gordo mesmo, tem que passar para iniciativa privada para reduzir gastos e torna-lo eficiente.” Expressões e resmungos como estes se tornaram recorrentes ao longo da história brasileira, em especial depois de 1989 com o dito fim do “Socialismo Real” que levou à queda do muro de Berlim e ao pseudo “trunfo do capitalismo” (HARVEY, 2008 ; CHESNAIS, 2001 ).
Com o fim da Guerra Fria para cá e exercitando a nossa memória, ou mesmo revisitando as leituras e registros de jornais sérios e de jornalecos de entretenimento que retratam a história econômica do país, vamos ver como foi se construindo o consenso societal que o ESTADO está falido, que a saúde financeira dele está em colapso e que este mesmo ESTADO precisa fazer reformas e mais reformas para reformar o ESTADO reformado! Um consenso baseado no contrassenso! Caímos no conto do vigário! Vejam só: entra governo e sai governo e a palavra de ordem é reforma: reforma disso ou reforma daquilo! É só prestarmos um pouquinho de atenção e perceberemos que nos noticiários das TVs, nos programas de rádio e agora, para alcançar a geração digital e do meta-verso , nos longos vídeos de 60 segundos dos ”Tik Tok’s” e “Kwai’s”, os principais verbos que saem dessas caixas entorpecedoras são reformar e economizar!
E objetivo central destas reformas é sustentado pelo discurso que o ESTADO tem que ser mínimo, que o mercado é a solução! Que serviço público está em crise e que a solução é terceirizar tudo! Ou seja, é claramente uma expressão numérica: serviço público ruim + ESTADO gordo = solução a iniciativa privada. Eureca! Tudo resolvido!….Pergunto aos leitores: será?
ESTADO Mínimo para o povo e ESTADO Máximo para o Mercado!
Por exemplo, nós, servidores públicos da Universidade Estadual de Goiás, fomos surpreendidos com uma coerção do Governo/ESTADO fantasiada de preocupação com a saúde do servidor! Enviado, por e-mail, no final da tarde de sexta feira – 12 de maio de 2023 – uma determinação de realizarmos, entre os dias 15 a 17 do respectivo mês e ano, exames clínicos para atestarmos nossas condições de saúde ao trabalho (UEG, 2023) ! “Nossa, que lisonja”, poderíamos dizer! “O nosso patrão estatal está preocupado com nossa aptidão de saúde para continuarmos o trabalho (…que bonitinho!)”! Mas não, não é isso!
Engraçado que, de repente, a preocupação do ESTADO com nossa saúde fez o governo pagar para uma empresa privada – POPMED Medicina e Saúde Ltda – a bagatela de valor total de R$ 91.137,00 (noventa e um mil cento e trinta e sete reais), conforme proposta datada de 03/05/2022, no processo registrado no Sistema Eletrônico de Informações do Governo Estadual de Goiás (GOIÁS, 2022) . É só conferir!
Fiquei me perguntando: ué, não tem que economizar? Ué, não poderia o Curso de Medicina de Itumbiara fazer este diagnóstico? Ué, não poderiam ser representantes do IPASGO a fazer estes exames laborais, de modo não haver mais custos aos cofres públicos de Goiás? Tantas dúvidas…
Mas se estas fossem minhas únicas dúvidas, tudo bem! O pior foi descobrir que em Iporá, entre os lugares ofertados para a realização desta prestação de serviços de exames médicos periódicos e complementares com emissão de atestado de saúde ocupacional se trata de um prédio vinculado à instituição religiosa pentecostal, lugar divino de alguns dos legisladores, eleitos “pelo povo” e não eleitos por Deus, para representar Goiás no cenário político! E uma pergunta que me atiça: e se ao invés da igreja o lugar para este serviço de avaliação de nossa capacidade laboral fosse nas dependências de um Terreiro de Candomblé? Haveriam queixas?
Será que o secular ESTADO Republicano Liberal abafou de vez o sentido do que é laicidade e se esqueceu que deveria de se abster de ter relações econômicas com as instituições religiosas ? O ESTADO perdeu a noção que há mentes antenadas que questionariam como uma empresa terceirizada de saúde contratada pelo governo, reterceiriza seu serviço a uma entidade religiosa? É fato que o único vínculo com o serviço de saúde desta instituição é só a saúde da alma! Mas o templo ser um dos lugares para nos obrigar – no prazo de três dias e sem levar em conta nossas agendas pessoais – a fazer os respectivos exames periódicos de saúde, é mítico!
Como professores é um dever da gente lembrar como nos últimos anos (2016 a 2022) o Brasil afundou no conservadorismo religioso para aprovação de suas pautas políticas e econômicas! Nada contra a religião, mas cada um deve ocupar o seu quadrado! Não é por acaso que nas aulas de metodologia científica uma das primeiras coisas que aprendemos e ensinamos é que existem diferentes tipos de conhecimento e, são eles: popular, religioso, filosófico e científico (MARCONI; LAKATOS, 2003 ).
Havendo preocupação com a saúde do servidor da UEG, e aqui falo mais precisamente em nome dos docentes, o governo não teria acumulado um déficit salarial de quase 41% (segundo os dados do DIEESE-GO/2023 relatado pela Associação de Docentes da UEG – ADUEG em ofício ao governador Ronaldo Caiado ) aos trabalhadores da educação superior: professores da UEG as molas mestras para a produção de conhecimento em Goiás e alavanca para a autonomia científica do estado goiano! Preocupando-se com a saúde de seus professores, não colocaria a categoria docente contra ela mesmo, reformando nosso plano de carreira e fazendo com que colegas vasculhem a produtividade acadêmica dos outros colegas, para provarem um ao outro quem é mais produtivo, e com isso retirarem o direito adquirido de uns para a satisfação financeira do outro! Realmente se ele tivesse preocupado não explorava os títulos de doutores e mestres, impedindo a progressão dos docentes na carreira universitária ao não reconhecer, portanto, o título para melhoria nos ganhos salariais. Como ter saúde mental se somos vigiados, cooptados pela produtividade improdutiva e cerceados a todo momento com expressões “cumpra-se, para não haver suspensão de pagamento”? Como não adoecer com o fato de dias após dias, as reformas nas políticas econômicas do governo estadual nos assombrarem com as ameaças de fechamento de cursos responsabilizando professores e pesquisadores por não terem alunos em salas de aula? Como não adoecer tendo consciência que a diminuição de alunos na UEG está intimamente ligada ao acordo diplomático entre ESTADO e Mercado em reduzir o parque científico da universidade pública acessível à classe trabalhadora para liberar este nicho educacional às fábricas de educação (ANTUNES; PINTO, 2017 ) voltadas à produção de mão de obra para o mercado, bem como submeter o ensino às lojas de Educação à Distância que, facilmente, podem vender um semestre de curso superior ao gosto simplório do freguês????
Ouvimos todos os dias: “Ah, a universidade dá prejuízo, não forma bem, os cursos de formação de professores são arcaicos e não ensinam o que precisa na escola…” e por aí vai…Como não adoecer com estes discursos construídos por aqueles que querem vender educação fast-food e alimentam, em conluio com o governo/ESTADO, a falsa ideia de uma crise que favorece o desmonte do sistema público? Se quisesse sanar a crise por que não começar com cuidados básicos com seu patrimônio? Muros caídos, alambrados retorcidos, muros embolorados, precarização das instalações e matagal nos pátios das unidades universitárias viraram marcas registradas da UEG do governador Ronaldo Caiado.
Enfim, estava com medo de não estar apta ao meu trabalho! E se descobrissem que fui contaminada pelo espectro comunista? E se descobrissem que eu e mais dezenas de meus colegas estão adoecidos há tempos em virtude do descompromisso deste governo na manutenção das condições concretas de existência dos servidores da UEG, ao negar o direito ao aumento de salário real e justo da categoria?
Mesmo com medo, encarei o dragão: O ESTADO, territorializado no templo religioso e representado pela médica contratada pela terceirizada, certificou-me! Após a profissional ler o formulário que respondi e algumas perguntas sobre minha saúde física e mental, foi atestada minha validade ao trabalho: afinal as síndromes de ansiedade, insatisfação emocional em virtude da desvalorização profissional, dificuldades em dormir, dor no estômago, enxaqueca e etc. já fazem parte do dia a dia da profissão professor, não é mesmo!?
Também não foi difícil notar que o trabalho daquela jovem médica era exaustivo também! Lá estava a médica: sentada numa cadeira escolar e assinando papéis numa mesinha da educação básica, ergonometricamente, inapropriada ao trabalho. O risco desta trabalhadora desenvolver uma LER no final do dia e de desencadear uma depressão em decorrência dos reclames dos servidores são eminentes. Pensei: bem vinda ao ESTADO mínimo do estado de Goiás e ao rito do mercado máximo! Ali estava mais uma representante da sociedade do precariado, como bem nos esclarece Antunes (2018, p. 65) em sua obra o “Privilégio da Servidão”. A médica e eu estamos no mesmo barco: “dois segmentos importantes da mesma classe-que-vive-do-trabalho, em sua aparente contradição […] !
E para aqueles que, por algum motivo, foram desobedientes civis e não cumpriram a ordem, a dúvida: E agora, onde fazer? E a resposta veio rápida: farão os exames na Polícia Civil da cidade! Chega ser icônica a resolução e até não acredito que tenha sido intencional. Porém, o efeito colateral da causalidade do atraso foi muito simbólico. Uma resolução muito sugestiva sobre a relação ESTADO CONSERVADOR x PODER: : é isso que dá não ir à Igreja, acabou terminando o seu dia na polícia!
Enfim, dúvidas e dúvidas e mais dúvidas! E, frente ao concreto adoecimento de todos nós, da falta de ânimo da categoria na luta pelos nossos direitos ceifados e diante a necessidade de escolher qual dúvida desistir, covardemente, tive que assumir o velho ditado, porém modificado: manda quem pode e obedece quem tem boletos vencidos!
Iporá, 15 de maio de 2023 (revisado 19 de maio de 2023)
Texto de Paula Junqueira da Silva Rezende, Professora de Geografia da Universidade Estadual de Goiás, Câmpus Oeste, Unidade Universitária de Iporá. Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: paula_junqueira@hotmail.com
Notas e referências
HARVEY, David. O Estado Neoliberal. In.: HARVEY, David. O neoliberalismo-história e implicações. Tradução Adail Sobral; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2008. p. 75 a 96.
CHESNAIS, François. Mundialização: o capital financeiro no comando. Tradução de Ruy Braga. Revista Outubro, [s.l.], n. 5, p. 7-28, fev. 2001. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a%CC%83o-5-Artigo-02.pdf. Acesso em: 18 jun. 2019.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS. Universidade Estadual de Goiás. Coordenação de desenvolvimento humano. Ofício Circular nº 126, de 12 de maio de 2023. Digital. Disponível em: http://sei.go.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=1 informando o código verificador 47625606 e o código CRC 4483CB7B.Acesso em: 15 maio 2023.
GOIÁS. Secretaria de Estado da Economia. Contrato 037/2022. Processo 202200004051629 – prestação de serviços de exames médicos periódicos, exames complementares com emissão de atestado de saúde ocupacional, que na forma abaixo entre si fazem: https://sei.go.gov.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=000031347571&codigo_crc=F5904BC4&hash_download=8c22146a4873857806609bea244ce6847c14dcc88c60d55b89727c9bd26bf4bfd0c8e56bd373bd164c5323cb2e5705fbb2f34ae949286f42f177eb3e042f066d&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=1 . Acesso em: 15 maio 2023.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. O Estado brasileiro é laico? In: Observatório da laicidade na Educação. Disponível em: http://ole.uff.br/o-estado-brasileiro-e-laico/ . Acesso em: 16 maio 2023.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 5 ed. – São Paulo: Atlas 2003.
MOREIRA, Marcelo José. Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Goiás. Ofício n° 1, de 17 de abril de 2023.
ANTUNES, Ricardo; PINTO, Geraldo Augusto. A fábrica da educação: da especialização taylorista à flexibilização toyotista. Vol. 58. São Paulo: Cortez Editora, 2017. (Coleção Questões de nossa época).
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. (Coleção Mundo do Trabalho).