Texto de Alan Oliveira Machado, doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Nos dias atuais, o império da ignorância começa quando não precisamos mais ter razão, e, sim, visualizações, likes, curtidas e seguidores virtuais. A hegemonia da irracionalidade é um sintoma grave dessa época de pouca paciência para a reflexão e de uma volubilidade espantosa para agarrar crenças flutuantes, sem raízes ou verticalidade alguma. É claro que no pântano das redes sociais não brotam apenas charlatães caçadores de like, mas o modus operandi das redes não muda de um farsante para uma pessoa honesta, o que importa sempre é o lucro. Eles querem o desejo de quem curte e compartilha não o conteúdo que vai na postagem. Se o conteúdo não é o centro da coisa, o centro é a abundância de tolices que prende ad aeternum a atenção dos seguidores.
Assim, o outrora cidadão de bem, com capital emocional inflado e impulsividade vazando por brechas narcísicas, resta, no mais das vezes, como peça de sustentação do turbilhão de idiotices que devasta a civilidade e instaura cenários tristes de se ver. Nessa lógica, um imbecil vira um líder incontestável quando a turba de seguidores, cuspidores de curtidas e visualizações alça a sua insignificância à casa dos milhões de seguidores e das centenas de visualizações, compartilhamentos e curtidas diárias, coisa que movimenta um intenso mercado de anunciantes e rende fortunas mensais a essa espécie de flautista de Hamelin, genericamente chamado de influencer.
Diante da facilidade de ganhar dinheiro, o imbecil reforça o engajamento em suas redes aumentando a intensidade das idiotices. Não importa se o que posta é contraditório, antiético, desonesto ou mentiroso, importa que está aumentando os seguidores, os likes e visualizações, importa que está, como dizem, bombando, lacrando, fazendo dinheiro fácil. Dias atrás um desses flautistas virtuais foi às redes dizer que um livro literário era imoral e pervertido porque continha referências a drogas e sexo. Bastou isso para uma suposta universidade particular retirar o romance da lista do vestibular, o que é espantoso.
O comentário do tal youtuber, outro nome para influencer, denota uma ignorância brutal sobre as funções da literatura e sobre o que qualifica um livro para o vestibular. Provavelmente, o influenciador não tem hábito de leitura e nem leu o livro que criticou. Se tivesse lido, talvez se sensibilizasse com o terror que uma mineradora estava fazendo na cidade onde passa a história, ou com como a vida de uma criança num lar desajustado, perdido na pobreza e na falta de assistência pode produzir um adulto com sérios transtornos mentais, incapaz de viver uma vida tranquila. O grave não é a opinião grosseira, movida por princípios falsos e desinformação, que ele veiculou. Opinião é opinião. Conhecimentos e fatos são coisas diferentes que nem sempre habitam opiniões, infelizmente. O lastimável de tudo mesmo é uma instituição cuja função é produzir ciência e transmitir conhecimentos, amparada em rigor metodológico e científico, acatar a opinião tosca de um falastrão de internet apenas porque ele tem seguidores. Não há dúvidas nesse caso de que o comportamento da referida instituição depõe contra sua condição de universidade.
O livro que feriu os supostos brios morais do flautista online é o excelente romance do escritor Marçal Aquino, “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” e trata do amor, suas vicissitudes e intermitências: do amor de um menino por uma história; do amor de um bancário por sua colega de trabalho; do amor de uma dona de hospedagem por um hóspede; do amor de um hospede por uma moça que viu num porta-retratos de loja; do amor de um pastor pela esposa falecida e por uma prostituta; do amor de uma moça jovem, abandonada na vida desde criança, por um fotógrafo, do amor dos personagens centrais por fotografia.
Diante da rasa opinião do influencer, pasmem, eleito a deputado federal por seus seguidores, fico pensando nos próximos livros a serem corroídos por sua ignorância e me vem à cabeça uma questão rasa bem ao estilo dele: já pensou no que vai acontecer se o tal youtuber, “defensor da família, da religião e dos bons costumes”, souber que a Bíblia, de entrada, registra um irmão matando o outro e logo à frente conta a história de duas filhas que transaram com o pai e engravidaram produzindo filhos-netos para o genitor e sobrinhos-irmãos para si mesmas? A ignorância vive na superfície e cria monstros que devoram a superfície como se tivessem salvando-a do caos. Há braços!