Alan Machado
A solidão atrai muitos nomes e incontáveis sentidos. Ela não é tão sozinha como parece. Vive em uma miríade de lares, independente da opulência. Existem pessoas que se acomodam em uma posição de sujeito e nem a sentem chegar com sua bagagem de incertezas e seu gosto por tingir de cinza as paredes internas da casa. Quando a percebe, não raro, essa gente a saúda na chegada, a pega pela mão fria e a leva para um bailar alegre sob o sol de primavera ou uma chuva de verão qualquer. Eu sou desse tipo: quando encontro a solidão abro os braços em íntimo acolhimento, vasculho sua bagagem de incertezas e me enriqueço e me encabulo e me divirto com suas perspectivas nem sempre leves. Não sei se estou certo, mas dá certo aceitá-la como boa companheira que gosta de filosofar e de espremer as nossas limitações sociais e os nossos desejos secretos para servir como suco na mesa do jantar.
Confesso que a solidão é uma companhia que me alegra porque me faz criativo, me chama de poeta e me põe a escrever, quase filosófico, versos narcísicos em espelhos quebrados. Tem nada não, me deito na rede e fico assistindo ela falar da miudeza de tudo que eu sou. Nisso eu me vingo: a solidão é grande e não cabe toda em mim, então não há como ela se esconder para me pregar peças ou aprontar vexames que sujem a minha roupa limpinha de sujeito. Rá, rá, rá. É isso, a dona solidão não me engana, embora tente muito a ponto de às vezes me irritar. Conheço muita gente que também a enfrenta numa boa. Tenho um irmão, por exemplo, que faz dela belas telas de pintura à óleo. Ele sabe colorir a solidão, sua forma de estar num convívio amigável com ela... outro irmão faz dela versos e canções... um terceiro molda ciência e arte e faz uma alquimia que parece ciência ou uma ciência que parece alquimia... todos recebendo-a de bom grado em suas mansardas, enfrentando-a quase inteiros.
Não há nada errado em ser só, porque nunca estamos sós; não confunda sentir falta com estar só, diz ela, debochando da minha cara enterrada num livro de Françoise Dolto, procurando uma anatomia para a própria solidão ou fuçando a prosa ressentida de Bernardo Soares, aquele outro desassossegado de Pessoa, para ouvi-lo me dizer: Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos esses meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos (Pessoa, 2006, p.205). Como podem ver, o Bernardinho do Pessoa vasculha a bagagem da solidão com o coração todo ressentido. Expressa quase um grito desesperado de me dá o que eu não sou porque o que eu sou não sei me dar; porque o que eu sou me dilacera, não é uma roupa limpinha de sujeito cheia de enganos perfumados como a deste escriba, que não esconde a descaração em usá-la. Pessoa deve ter levado muito a sério a solidão e, em retribuição, ela lhe deu álcool e literatura abundantes, tão abundantes que precisou de outros e outros e outros para administrar o latifúndio existencial oferecido por essa senhora. Não sei a dimensão da relação entre o poeta português e a solidão e o tanto de si no mundo e o quanto decisivo foi no mundo ou do mundo. Não sei se foi coisa do ente ou coisa doente.
Munido da minha ignorância, da minha roupinha limpa de sujeito, imagino que a solidão como sofrimento doentio é um desencontro com os objetos de identificação, por isso é um desencontro consigo mesmo. Não posso esquecer aquele tanto de desencontro nas quatro linhas do Bernardinho parágrafos acima, rs. Estar consigo, nesse quadro de solidão, é estar de frente para um espelho sem imagem. Coisa que assusta até. A angústia, então, é inevitável à medida em que o quantum de libido dispensado ao outro do espelho retorna ao não encontrar o objeto. Por esse viés, a solidão pode se configurar como falta de si. O que predomina, nesse caso, é uma flutuação desesperada em torno do outro que sempre escapa da teia de identificação porque tal teia é frágil e nunca suficiente para segurar, nos fios do desejo, esse outro, matéria de si. A busca, assim, ganha um tom desesperado e sofrido.
Nesse quadro, a solidão se configura como puro sofrimento patológico. Há, por outro lado, aqueles que desfrutam de uma solidão com sofrimento atenuado, a que alguns chamam de solitude para diferenciar da experiência patológica de estar só. Essa condição não implicaria a falta de si, mas a localização de si na falta. Nesse caso, existe uma posição de sujeito que se reconhece e que admite a falta, o limite, incorporando a falta como um inevitável que necessariamente não se instaura pela ameaça à integridade subjetiva. Talvez seja essa a esperteza de reconhecer a solidão e recebê-la e acolhê-la e celebrá-la como se estivéssemos num rito de encontro com a nossa própria existência fugaz, precária, contudo pronta para ser sorvida, experimentada e tomada em tudo que é.
Referências
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
DOLTO, Françoise. Solidão. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Alan Oliveira Machado é escritor e professor na UEG Iporá