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História da AD: Luta dos anônimos, um deles, Alberico, o Bilico

Mais dois capítulos do livro QUANDO SAMAMBAIA PEGOU FOGO, de Moizeis Alexandre Gomis. Em um deles, reflexão sobre a luta anônima de alguns crentes. Em outro, o exemplo de Alberico, o Bilico. Vamos à leitura:

PARTE III – MILITANTES ANÔNIMOS

Pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome. Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja. (Epístola de Paulo aos Colossenses 1. 24; Atos dos Apóstolos 9.16)

Quando se analisa os fatos ocorridos no curso da história da Igreja, depara-se com acontecimentos de intrincada compreensão e questões cujas respostas não são menos difíceis de serem elucidadas. O reino de Deus, na verdade, é um reino de mistérios e que apresenta aparentes contradições que demandam atitudes de humildade, reflexão profunda e fé sincera, para serem compreendidas. Como conciliar a natureza de um reino, que tem por rei soberano o próprio Deus e Pai – perfeito em poder, em sabedoria e em amor – permitir o sofrimento, muitas vezes indizíveis, de sues súditos fiéis, e até inclui o sofrimento como parte da chamada ministerial dos seus servos, como declarou a Paulo: “Eu lhe mostrarei o quanto lhe importa sofrer pelo meu nome”? (Atos dos Apóstolos 9.16). Mais complicado ainda é ver o próprio Paulo, anos depois, dizer que se regozijava nos seus sofrimentos pelos cristãos de Colossos, com a intrigante afirmação de que “preenchia (completava) o que restava das aflições de Cristo”! Como conciliar um Cristo, que “sofreu todas as atrocidades do Calvário; que declarou ter “consumado” todo o sofrimento devido à redenção; que “venceu a morte e o inferno e que está sentado à destra do Pai; que tem todo poder no céu e na terra”; ainda estar sujeito a “aflições” que são compartilhadas com seus servos que militam o bom combate da evangelização e da fé?

Como entender a ruptura da relação ministerial entre dois amigos e companheiros de um frutífero ministério missionário, como ocorreu com Paulo e Barnabé, homens de Deus, cheios do Espírito Santo, que discordaram a ponto de contenderem e se separarem? Será que Barnabé e Marcos fracassaram nos seus ministérios depois da separação? O fato é que não. Vemos Paulo, anos depois, referindo a Barnabé como ministro que servia no reino de Deus como ele. E já no fim de seu ministério, encontramos Marcos e Barnabé incluídos no quadro de obreiros que trabalhavam com o apóstolo. (2 Coríntios 9.6; Colossenses 4.10; 2 Timóteo 4.11; Filemom 24).

Não raro, infelizmente, se vê líderes eclesiásticos censurarem obreiros e obreiras, atribuindo-lhes falta de chamada divina ou de fé, quando usam da sinceridade cristã e abrem o coração expondo as dificuldades, desânimos e tentações de abandonar o campo missionário. E é comum se ouvir sermões e encontrar textos em revistas e livros que taxam de fracassados no ministério aqueles que deixaram o campo de trabalho, optando por uma postura ministerial não muito convencional, militando a vida cristã no ostracismo ou voltando às antigas atividades profissionais. No contexto da história da Assembleia de Deus também houve e ainda há muitos casos de obreiros consagrados e cheios da graça do Senhor que exerceram, por opção, suas vocações e cumpriram suas chamadas de forma abençoada e frutífera, sem estarem diante dos holofotes, como líderes notórios e de projeção regional e nacional, como ocorreu com Marcos, Barnabé e outros da Igreja neotestamentária. O que a Bíblia ensina com indiscutível clareza, é que Deus não está preocupado com posições e cargos eclesiásticos instituídos para satisfazerem, muitas vezes, interesses e vaidades humanos. O que conta para o Senhor Jesus, é o exercício fiel do dom ministerial que cada salvo recebeu dele, para servir na Igreja e glorificar o Pai, seja ele exercido de forma notória ou anônima: isto é o que terá valor para ele naquele dia em que galardoará, com louvor e honra permanente, a cada um de seus servos. O resto é “madeira, palha e feno” que o fogo da justiça divina transformará em fumaça e cinza!

O que se propõe, portanto, nesta terceira parte é o registro de alguns exemplos que representem todos os anônimos militantes do avivamento pentecostal ocorrido em Goiás, nestes últimos setenta anos.

CAPÍTULO 22

PROFESSOR DA EBD POR EXCELÊNCIA.

“Combati o bom combate, completei a carreira e guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda”. (2 Epístola de Paulo a Timóteo 4.7e8 – grifo do autor).

Quer fosse lecionar na Escola Bíblica Dominical (EBD) ou não, ele religiosamente estudava a lição da revista e chegava à igreja, no domingo de manhã, preparado para ensiná-la. Começava na segunda-feira lendo o texto da leitura diária, indicado nas referências bíblicas e fazia as anotações de suas reflexões e exegese no seu inseparável caderno de espiral de arame. Ritual que se repetia nos demais dias da semana. No domingo de manhã, lá estava ele na Escola Bíblica Dominical, sentado no seu lugar costumeiro, com sua Bíblia, o hinário Harpa Cristã, a revista Lições Bíblicas da CPAD (ainda não existia a Editora Betel) e seu organizado caderno de anotações e comentários próprios, aguardando o momento de iniciar o ensino, caso fosse seu dia escalado para ensinar, ou se o professor do dia, porventura, tivesse faltado.

Com voz calma, compassada e baixa, ora com ênfase exortativa, ora embargada pela emoção da graça do Espírito Santo, porém nunca alterada, expunha o conteúdo da lição, de forma sistemática e didático-pedagógica, sempre enriquecendo-a com ilustrações práticas extraídas de leituras complementares ou da experiência vivencial do ministério e da vida, enquanto o auditório ouvia-o atentamente assimilando com facilidade o ensino ministrado, sem perceber o tempo passar. Esta sempre foi a conduta do presbítero Alberico Augusto da Fonseca, que levara a sério a recomendação paulina de que o obreiro do Senhor deve “manejar bem a palavra da verdade e não ter do que se envergonhar”. Ensinar a Palavra era o seu ministério por excelência, desde que fora batizado com o Espírito Santo e separado para o presbitério. O autor desta obra nunca esquece o dia em que, pela primeira vez, entrou no templo sede da Assembleia de Deus de Iporá, e o viu e ouviu ensinando na EBD, em uma manhã de domingo de setembro de 1972.

Alberico Augusto da Fonseca nasceu em Arapuá – MG, em 21 de outubro de 1911, coincidindo, portanto, o ano do centenário de seu nascimento com o de fundação da Assembleia de Deus no Brasil. Sua família confessava a fé evangélica presbiteriana, em uma sociedade mineira católica tradicional. Na época da grande migração de mineiros para Goiás, no segundo quartel do século XX, Alberico, já casado com Maria Júnia Araújo da Fonseca, nascida em 27 de julho de 1917, veio para Itajubá (futura Iporá) no início da década de 1940, vindo a residir na Rua Lázaro Vieira, esquina com a Av. 24 de Outubro. Ali tocava uma sapataria e celaria em sociedade com o concunhado Dermínio José Fernandes e participação de capital de Israel de Amorim, líder político local. No dia 29 de julho de 1943, seu concunhado Abraão Gonçalves de Melo e Divino Gonçalves dos Santos, vindos da Assembleia de Deus de Samambaia, com destino à Fazenda Buriti, hospedaram em sua casa. Convencido da veracidade bíblica e atualidade da mensagem pentecostal do batismo com o Espírito Santo, anunciada por seus hóspedes, Alberico e a esposa aderiram à Assembleia de Deus, sendo, portanto os primeiros crentes assembleianos de Iporá.
Divino Gonçalves dos Santos e Abraão Gonçalves de Melo prosseguiram viagem até à região da Fazenda Buriti, onde proclamaram a mensagem pentecostal aos mineiros presbiterianos que residiam ali, vindos de Samambaia e Arapuá, e aos moradores católicos da região. O avivamento de Samambaia se repetiu ali e muitas almas foram salvas. Trinta dias depois da conversão, em 29 de agosto de 1943, Alberico e esposa, mesmo morando ainda em Itajubá, foram batizados nas águas, no primeiro batismo realizado naquela localidade rural, pelo então pastor da Assembleia de Deus de Goiânia, Manoel de Souza Santos. Desse esforço evangelizador nasceu a Assembleia de Deus do Buriti, no município de Iporá, sendo organizada oficialmente como igreja em 09 de abril de 1944, já com algumas dezenas de membros.

Algum tempo depois, deixando a atividade de sapateiro e celeiro, Alberico foi se dedicar a agropecuária na região do Buriti. Ali congregava na Assembleia de Deus como membro, porém, por não ser ainda batizado com o Espírito Santo, conforme exigência da Assembleia de Deus na época, não exercia cargos eclesiásticos, nem mesmo de auxiliar. Tendo, porém, já recebido o batismo pentecostal, em 31 de dezembro de 1945, Alberico foi separado para o ministério do diaconato e logo depois consagrado ao presbitério. Auxiliou o presbítero dirigente da congregação, Abraão Gonçalves de Melo, na direção dos cultos e como professor da Escola Bíblica Dominical. Algum tempo depois, com a mudança de Abraão Gonçalves, foi empossado como dirigente, onde realizou um abençoado ministério pastoral, conduzindo a igreja ao ensino da Palavra de Deus, sem os extremismos dos costumes legalistas vigentes.

Sua postura, contudo, de visão doutrinária mais aberta que a de seus colegas de ministério, resultante do dedicado e disciplinado estudo das Escrituras, por um lado, promoveu a edificação e crescimento espiritual da congregação e, por outro, lhe trouxe-lhe certas dificuldades, em razão de não concordar com costumes legalistas então praticados na Assembleia de Deus. Um exemplo disso foi o que ocorreu com certa irmã, membro da igreja, que estava enfrentando problema pelo fato de o marido não ser crente e possuir um rádio em casa, no qual ele ouvia programas de cantores sertanejos. Alguns obreiros estavam pressionando-a para que obrigasse o marido a vender o aparelho, o que ele se recusava a fazer, ou então se separasse dele, se não quisesse ser excluída da comunhão da igreja. Angustiada, a irmã procurou o pastor dirigente. Alberico então aconselhou-a para que não desse ouvidos àqueles conselhos e que permanecesse fiel ao seu marido, amando-o. Disse-lhe também que o fato de o seu marido ter o rádio em casa, não a impediria de servir a Jesus, mesmo a igreja não permitindo, na época, os crentes possuírem rádios e ouvir suas programações.

De outra feita, a congregação da Assembleia de Deus situada na zona rural do Córrego das Vacas, a cerca de 30 quilômetros do Buriti, no atual município de Diorama, que estava sob a supervisão da Assembleia de Deus do Buriti, ficara sem dirigente e não havia ali nenhum irmão que soubesse ler, para dirigir os cultos. A única pessoa que sabia ler era uma adolescente de treze anos de idade, Nilda, membro fiel da igreja. Alberico então lhe entregou a direção dos trabalhos da congregação. Assim, durante seis meses, ela passou a dirigir os cultos, pregar e ensinar as lições na Escola Bíblica Dominical até que se providenciasse um novo dirigente.

Da igreja do Buriti, Alberico foi transferido para a Assembleia de Deus da cidade do Córrego do Ouro – GO, em 1947. Como os obreiros dirigentes na época não recebiam ajuda financeira regular da igreja (prebenda) e os crentes ali eram muito pobres, Alberico, impedido circunstancialmente de trabalhar de sapateiro, celeiro ou carpinteiro, profissões que dominava com perícia, sofreu muitas privações, ao ponto de passar fome com a esposa e suas cinco filhas: Diva, Sílvia, Helena, Ilda e Elza. Houve momentos em que mandava as crianças ir até uma tapera onde havia um pé de laranja-lima, para saciarem a fome. Um irmão, de nome Francisco, que era dono de uma lojinha de tecidos, de vez enquado lhe enviava alguns gêneros alimentícios que aliviavam as necessidades da família. Escreveu algumas vezes para a liderança em Goiânia e Anápolis, comunicando a situação de dificuldades que estava vivenciando, solicitando que providenciassem pelo menos o suprimento de alimentos para seus filhos. Contudo, não obteve resposta alguma. Tomado pela a angústia, em 1950, deixou a direção da congregação e retornou para Iporá, onde voltou a trabalhar de sapateiro em sua própria oficina. Posteriormente montou uma loja de calçados, e assim criou as filhas e outros filhos que nasceram posteriormente e ainda ajudou a criar sete netos pequenos, de uma filha que ficara viúva, sendo que o mais velho tinha apenas 12 anos de idade e a caçula um mês de vida, dando a todos o sustento e educação escolar digna. No seu comércio de calçados, na Rua Bahia, Bairro Mato Grosso, trabalhou enquanto a idade permitiu.

Quando a liderança em Goiânia soube que ele havia deixado a igreja de Córrego do Ouro, o procurou em Iporá, para tentar persuadi-lo a voltar para o ministério pastoral. Mas ele não sentindo direção de Deus, recusou. Com isto, passou a ser veladamente discriminado como obreiro insubmisso e de pouca fé. Homem de personalidade introvertida, de hábitos disciplinados, de sensibilidade aguçada e brio forte, as vezes era, injuriosamente, rotulado como crente “sistemático” e melindroso. Mas, na verdade, era um homem de Deus que cultivava uma discreta vida devocional de oração e estudo da Bíblia, conhecida por aqueles que conviviam com ele. Sem se preocupar com os juízos que lhe faziam, continuou servindo ao Senhor com fidelidade. A coerência era um princípio que sempre norteava sua conduta, as vezes até se excedendo em algumas maneiras de entender e aplicar os ensinamentos bíblicos. Vivia o que pregava e ensinava e pregava o que vivia.

Já próximo ao fim de sua vida, a liderança da Assembleia de Deus de Iporá, com a intenção de reparar a pressuposta injustiça cometida no passado contra o irmão Bilico (como era carinhosamente chamado), propôs levá-lo à Convenção Nacional para honrá-lo com a ordenação a pastor, como um título honorífico. Ele agradeceu e recusou, com a seguinte justificativa: “Quando eu tinha condição de trabalhar exercendo o pastorado, faltou-me o apoio, agora que já não posso fazer nada, vocês propõem consagrar-me a pastor? Não quero, não”.

Em 21 de maio de 2000, o irmão Alberico foi estar com o Senhor na glória celestial. Um mês e três dias depois, em 24 de junho do mesmo ano, Maria Júnia Araújo da Fonseca também foi chamada para se juntar a ele, onde aguardam a ressurreição e o galardão pelo que fizeram para o reino de Deus, mesmo nas sombras do anonimato e apesar das suas eventuais fraquezas e tropeços na jornada da fé, como tem sido com milhões de servos e servas do Senhor Jesus Cristo, através da milenar história da Igreja.

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