O Dozim da sanfona certa vez tocou para os santos da igreja dançar. Os santos não dançaram. Ele fez pedaços dos santos. É que o Dozim tinha tomado um porre muito forte. Vamos lembrar também dos bares do Fiicão e o do seu Neném Mumbuca. Os bares eram locais do povo se encontrar. O OG convida você e ver mais do livro de Paulo Afonso Ribeiro Barbosa que relembra a Amorinópolis na metade do século passado.
Os bares e os bailes daquele tempo
Estes estabelecimentos comerciais marcaram as nossas lembranças. Os bares de Campo Limpo eram famosos e, além de bar mesmo, eram os pontos de encontro da sociedade nas noites de sábado, quando havia bailes em seus salões. Os principais eram o do seu Fiicão e o do seu Neném Mumbuca. O do seu Fiicão era na esquina de baixo, na praça. Ao lado, na avenida, ficava a sua residência. Ele era oriundo de Uberlândia e uma pessoa muito extrovertida. Seu bar era muito animado, com alto-falante tocando músicas à noite, durante a semana e, nos sábados e domingos, o dia inteiro. Lembro-me que tocava muito uma música chamada “Seu Inácio Valentão”, que dizia assim: Seu Inácio Valentão/, Uma hora tá por cima,/Outra hora tá por baixo. Era o retrato do clima de faroeste que reinava naquela época. A “Colcha de Retalhos” (Aquela colcha de retalhos / Que tu me destes…) também estava no auge do sucesso. “Índia” era o maior sucesso também, assim como, “Quiereme Mucho”, “La Paloma”, “Assunción” e assim por diante. Seu Fiicão, mesmo, se encarregava de fazer o movimento no bar, se não houvesse freguês, porque bebia uns goles, dava tiros, animava o local. Os bailes ali eram famosos, primeiramente animados pelo Dozim, com sua sanfona vermelha, e depois, mais para frente, por outros conjuntos que começavam a aparecer. A Áurida, filha mais velha do seu Fiicão, era quem organizava tudo, com um senso de responsabilidade e liderança de se admirar. Tinha também o Adjair, muito trabalhador, o Iron e o Airmon, mais ou menos de minha idade e muito meus amigos, além de outras moças muito bonitas.
Por falar em Dozim, ele era uma pessoa fabulosa, um baiano extrovertido. Além de sanfoneiro, tinha uma oficina de consertar bicicletas, que era o principal meio de transporte daquela época, depois do cavalo. Também alugava bicicletas por hora. Quem não a tinha e queria dar uma voltinha, era ali com o Dozim mesmo. Aliás, comprava coisas estragadas, consertava e depois alugava. Lembro de uma vitrola que funcionava a corda, que alugávamos vez por outra para ouvir uns discos do Bievenido Granda, que meu pai havia conseguido não sei onde. Entretanto, a história mais interessante do Dozim aconteceu numa noite em que ele tomou um porre forte, entrou na igreja católica e começou a tocar sanfona e a mandar as estátuas dos santos dançarem. Como não quiseram obedecer-lhe, pegou um porrete e começou a ameaçar mais forte: dança ou apanha. No fim da história, os santos não quiseram dançar e ele desceu o cacete. No outro dia apareceu um punhado de santos quebrados. Foi a maior revolta da população. Ele teve que sumir um bom tempo lá de Campo Limpo.
O bar do Fiicão foi vendido, mais tarde, para o Hélio, um sujeito muito legal, procedente de Rio Verde. Ele se casou, logo depois, com a Dora, filha do seu Manoel Josué e da dona Cicinha. A primeira filha deles é afilhada de meus pais. Tempos depois, parece que quem tocou este bar foi o Teodoro Grego, aquele que tinha serraria a locomove.
Havia ainda outro bar famoso naquela época, que era o bar do seu Neném Mumbuca, marido de dona Dadá e pai do Rubens, da Maria – que a gente chamava de Mariinha do seu Neném Mumbuca –, da Miltes Lázara de Souza – que nós chamávamos de Mirtes do seu Neném Mumbuca –, e de outras meninas mais. Primeiro era ali perto da casa do Cirilo Damascena, mais ou menos onde é o prediozinho feito pelo João Bento, na praça. Depois mudou para onde hoje é a sorveteria da Ana do João, parente do seu Itamar, perto de onde era a pensão do Manoel Josué. O seu Neném promovia bailes memoráveis também, mas me lembro dele principalmente pelo carinho com que tratava a gente e pelo picolé de leite que fabricava, o mais gostoso que já provei em toda a minha vida. Os sorvetes de creme holandês, de leite, de côco queimado, servidos em copinhos brancos parecidos com isopor, eram de um sabor divino, também. Quando a gente conseguia umas moedinhas a mais, a festa se completava com um guaraná caçula ou mineirinho. Era comum fazer um furo na tampa, normalmente com um prego, agitar a garrafa e, depois, colocar na boca. Aquilo esguichava forte, com a pressão do gás. Era a maior farra. Vez por outra a gente esguichava o líquido no colega ao lado e virava uma guerra de guaraná.
Teve uma época em que havia outro bar, ali perto de onde é a prefeitura hoje e onde funcionou, antes, o armazém do Donzete. Era o bar do seu Jerônimo Martins, pai do Murilo, do Martim, da Rosa, do Mauro e mais outros, de que não me recordo o nome mais. O Martim possui, hoje, uma oficina de carros em Iporá e ainda mantemos fortes laços de amizade. Lembro-me dos animados bailes de carnaval que a dona Celina, esposa de seu Jerônimo, promovia. Tinha, também, um tal de baile da chita, em que as moças se enfeitavam com saias rodadas feitas deste tipo de tecido, que normalmente eram floridos. Seu Jerônimo Martins, uma vez, teve um “arranca rabo” com o Geraldo Calixto, que a coisa foi feia. Foi tapa pra todo lado e a poeira levantou.
Por falar em bares, a turma dos anos cinquenta deve se lembrar de uma bebidinha alcoólica vermelha, famosa, que a meninada ficava doida para dar uma bicada, de nome Capilé. Era doce e muita gente “calcinava” a pinga ou o conhaque com um pouco do Capilé. Outros, jogavam por cima do sorvete, como se fosse groselha. Tinha, também, uma cerveja preta de nome Nijer, fabricada até hoje, que era muito usada para beber e para dar para cavalo com dor de barriga ou, ainda, para aumentar o leite de mulher que estivesse amamentando. E uma coisa puxa a outra: falando em cerveja, me lembrei que elas vinham embaladas em sacos, sendo que cada garrafa era envolta em uma capa tipo saia, feita de talo do pé de arroz ou de trigo. Vestia-se a saia na garrafa, para não quebrar, e ia-se colocando todas deitadas dentro do saco, uma com a boca para um lado, outra para o outro lado e assim por diante. Acho que cabiam umas trinta a quarenta garrafas por saco. Depois das garrafas vazias, a gente procedia da mesma maneira, reembalando-as, para revendê-las aos donos de bares. Outra bebida muito consumida, como até hoje, era a cachaça. A Bom Jardim era famosa. Mas tinha uma outra fabricada em Campo Limpo mesmo, pelo Joaquim Alegre, também muito apreciada. Acho que se chamava Saci.
No fim da década de sessenta e nos anos setenta, a moda era o Xangai, do seu Zeíco, que funcionava na baixada da avenida principal, rumo da saída para Rio Verde, ao lado de onde foi o cine Atlas do Nino e do Tito. Ali a coisa já foi para a minha geração e, creio, para algumas gerações depois da minha. Esse bar ou salão de danças possuía aparelhagem de som mais moderna, eletrônica. Os tira-gostos já se faziam presentes e tinha até rã frita. Já refletia a mudança dos tempos. A bebida mais importante já era o whisk Drurys ou o conhaque Presidente.
Os armazéns de cereais
Os cerealistas eram pessoas muito importantes para a economia da região. No começo, os cereais eram beneficiados em monjolos ou socados em pilões, para atender às necessidades da população local. Quando nos mudamos para Campo Limpo, na metade do século passado, os monjolos ainda eram comuns nas fazendas que estavam sendo formadas, porque o transporte até a cidade, para beneficiar os cereais, não era muito fácil. Mas na vila já começavam a aparecer as máquinas de beneficiar arroz, movidas a motor diesel. Muitos desses estabelecimentos era uma mistura de máquina de arroz com cerealista, que compravam arroz, feijão e até café, revendendo-os em Uberlândia. Havia uma grande produção agrícola em Campo Limpo, naquela época. Daí a presença das cerealistas. A mais atuante, quando nos mudamos para Campo Limpo, era a do seu Zé Graciano e do seu Wilson, que funcionava na esquina da avenida principal com a rua onde morou o Tito, do outro lado da avenida onde era a farmácia do seu Vergílio.
O seu Zé Graciano foi um grande amigo de meus pais. Ele ficava trabalhando em Campo Limpo e a esposa e filhos moravam em Uberlândia para as crianças estudarem. Um dia, um dos filhos dele, que passava férias em Campo Limpo, estava voltando a cavalo de uma fazenda, onde tinha ido ajudar a fazer uns doces para levar para casa, quando fosse voltar para Uberlândia. Nesse dia ele levava junto uma espingardinha de carregar pela boca, muito comum naquela época. Uns soldados de Iporá, metidos a besta, que estavam por lá para mostrar autoridade, gritaram para o rapaz parar. O cavalo se assustou, o garoto não era prático em montaria, o animal começou a se assustar e um dos soldados, interpretando o fato como desobediência, fuzilou o menino na hora, ali no meio da rua. Que covardia! Que tristeza! Pouco tempo depois o seu Zé, com o coração ainda bem machucado, morreu de enfarte em cima do caminhão que servia de palanque na campanha do João Maranhão para prefeito, no mesmo local em que o filho havia sido assassinado.
Havia também, na outra esquina de baixo, a máquina do seu Álvaro Sabino, pai do Nestali, meu antigo colega de grupo escolar, que se casou com a Lieci, filha do Luís Nicoláu, um barbeiro da cidade. Comprei muito arroz ali do seu Álvaro, uma figura muito educada. Com todo o respeito e com a permissão do meu amigo Nestali: ô Lieci que era bonita! Se tiveram filhas, devem ser lindas, também, porque a mãe era uma beleza. Sumiu meu amigo. Nunca mais o vi, mas outro dia tive notícias dele: tem um belo restaurante em Palmeiras de Goiás.
Já no começo dos anos sessenta, o seu Quindô montou uma máquina de arroz ali na rua que passa ao lado da atual igreja dos pentecostes, quase esquina com a avenida de baixo, para o lado da Jacuba. Foi uma baita construção, para os padrões da época. O Antônio, irmão dele, que nós chamávamos de Antônio do Quindô, que depois virou Antônio da Loja Pioneira de Iporá e, mais tarde, pastor Antônio, trabalhou com o Quindô nesta máquina de arroz. Em frente morava o Pastor Bróia, que deu um grande impulso à igreja pentecostal de Campo Limpo e que tinha umas irmãs muito bonitas que moravam com ele. O Antônio terminou se casando com uma delas. Só podia dar nisso.
Seu Quindô tinha um caminhão Mercedes cara-chata, de cor verde, que vez por outra utilizava para levar alguma carga ao Piauí e aproveitava para trazer cheio de conterrâneos pobres que estavam em dificuldades por lá, precisando de trabalho. Vinham desde braçais, que ele colocava nas fazendas da região, até empregadas domésticas. Chegava com aquele pau-de-arara cheio de gente, descarregava todo mundo no prédio da máquina de arroz e, em dois ou três dias, estava todo mundo empregado. Para minha mãe mesmo, ele trouxe uma moça que trabalhou conosco muitos anos. Sobre seu Quindô, pouca gente sabe de sua verdadeira origem, mas era um garoto que buscava, a todo custo, crescer na vida. Chegou a ser moleque de rua lá em Teresina e depois saiu buscando uma oportunidade para crescer. Numa dessas levas que trazia trabalhadores para as zonas que começavam a ser desbravadas, o moleque Quindô veio junto e por aqui está até hoje. Guarda ainda na carteira uma moeda que economizou desse tempo, para nunca se esquecer de suas origens. Tenho muito apreço por esse pioneiro.
Voltando a falar no Antônio, irmão do seu Quindô, ouvi dizer que uma vez ele estava hospedado no hotel Junqueira e passou mal à noite, porque jantou demais. Então seu Evaristo deu, para ele, um comprimido que era uma novidade naquela época, chamado Sonrisal. Dizem que o Antônio tirou um pedaço, jogou na boca e meteu água por cima para engolir. Quase morreu sufocado quando a coisa começou a ferver em sua garganta. Nunca perguntei para ele se isto foi verdade. Há pouco tempo atrás ele e um de seus filhos deram-me a honra de uma visita lá na fazenda. Batemos um papo agradabilíssimo, relembrando os tempos de Campo Limpo, mas me esqueci de perguntar-lhe sobre este caso.
Havia muitos outros cerealistas, naquela época, que não tinham a máquina de beneficiar os grãos. Simplesmente compravam os sacos de cereais, armazenavam, formavam cargas para os caminhões e vendiam tudo para Uberlândia. Um dos mais antigos deles foi o seu Manoel Alves, que morava ali na avenida da igreja católica, entre a rua do Hotel Junqueira e a rua da farmácia do seu Vergílio. O seu Manoel Alves, que era pai de criação do Albino, um contemporâneo meu muito bom de bola, construiu um armazém grande quase em frente a sua casa, que uma época foi alugado para funcionar o grupo escolar da dona Lélia. Estudei lá.
Outro cerealista famoso da época era o seu Manoel Cearense, marido da dona Maria, e pai do Toím, do Chiquím, do Dím, do Totõe, do Leôncio, da Tetéia. Era muito amigo do meu pai e os filhos dele sempre foram muito meus amigos, principalmente os dois mais velhos, Toím e Chiquim do seu Manoel Cearense, como os chamávamos naquela época e cujos nomes verdadeiros são Antônio e Francisco Pereira Lucas. Eles tinham mais ou menos a mesma idade minha, com o Toim um pouco mais velho. Interessante foi que um dia, há poucos anos atrás, me bateu uma saudade danada do Chiquim, que há muito eu não via e resolvi ligar para ele. O filho atendeu e disse que o pai estava hospitalizado. Então resolvi esperar que ele melhorasse, para ir fazer-lhe uma visita. Uma semana depois o Toím me liga dizendo da morte do Chiquim. Que coisa triste velar o corpo do amigo, ver os familiares sofrendo. Lamentei muito, não só a morte de um amigo, mas também porque planejávamos fazer uma festa em uma chácara e convidar os sobreviventes daqueles tempos. Seria uma grande confraternização. Felizmente o Ernandes do Dino, anos depois, meteu os peitos e conseguiu juntar muita gente do Campo Limpo antigo em uma festa na casa dele.
Mas voltando a falar em seu Manoel Cearense, quando a produção de cereais foi diminuindo em Campo Limpo, aliás, já Amorinópolis naquela época, trocou as casas dele, que eram ali na esquina de cima da praça, do outro lado da rua da igreja pentecostal atual, onde uma época funcionou o Bradesco, pela fazenda do Senhor Paulista, o pai do Zé do Senhor Paulista, do Silas que mora hoje em Iporá, da Maria que se casou com o Leônidas, da Bárbara, da Aparecida e da Hilda, que se casou com o Negrinho, filho do seu João Costa. Esta fazenda era ali para o lado da fazenda do Geraldinho Vermelho, na estrada antiga para Rio Verde (que hoje é onde passa o asfalto), à esquerda. Fui várias vezes lá com os meninos do seu Manoel, chupar laranja e montar em bezerros. Era a maior farra.
Falando sobre os cerealistas do início de Amorinópolis, não se pode esquecer do Sebastiãozinho Três-Dedos e do Abílio, dois irmãos que eram de São José do Rio Preto. Viajavam para Campo Limpo desde o fim dos anos cinquenta e depois resolveram construir, ali, o próprio armazém. Eles construíram uns prédios enormes, para os padrões da época, lá na saída de Rio Verde, pela estrada antiga, quase em frente à chácara do Sinhô Paulista. O Sebastiãozinho casou-se com uma moça lá da Água Emendada. O Abílio casou-se com a Terezinha, filha do Manoel Josias e neta do seu Josias e dona Jerônima e voltaram para Rio Preto. Não sei mais o que foi feito deles, hoje em dia. Um dos irmãos parece que foi assassinado.
Ferreiros
No poderia faltar este profissional numa região onde o desmatamento para formação de lavouras era a atividade principal e, para tal, as ferramentas de ferro ou aço eram imprescindíveis. Um dos primeiros comércios de Campo Limpo foi a fábrica de foices, machados e facões de seu Jerônimo Ferreiro. Na realidade, foi mesmo a primeira fábrica da currutela, produzindo ferramentas para a lavoura, tais como foices, facões, cavadeiras, ferraduras e mais um monte de coisas. Seu Jerônimo e o seu irmão Eliel foram uns dos primeiros moradores da vila Campo Limpo. Segundo seu Jerônimo, ele ajudou a cobrir os primeiros ranchos da vila, com palhas de coqueiros. Suas famosas foices da marca JF estavam presentes em todas as fazendas. Eu mesmo, vez por outra, passava por lá e comprava umas dele, aproveitando para roubar uma meia hora de prosa, para escutar os casos antigos. Deve ter, hoje, mais de noventa anos. Seus filhos é que ainda tocam a fábrica. Um deles tem uma oficina de concertar relógios no Mercado Central de Goiânia.