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Na Iporá de ontem as diferenças entre ricos e pobres na hora de viajar


Professor Moizeis Alexandre Gomis conta mais… Aqui, outro capítulo do livro O CONTO QUE O POVO DIZ E EU CONTO POR MENOS DE UM CONTO. Neste, ele fala dos apuros de andar de avião. Mas esse era o meio de transporte dos ricos. Os pobres tinham que suportar era a lenta jardineira…


CAPÍTULO OITO

VOANDO POR CIMA DAS GRIMPAS DAS ÁRVORES

Em Iporá houve tempo em que as pessoas de melhores condições socioeconômicas, de fato e literalmente, “andavam por cima.

Na “estação da seca”, com a sorte a favor, gastava-se um dia inteiro para ir a Goiânia ou a Aragarças. Isto, se viajasse de “jardineira”, aquele ônibus bicudinho, da MERCEDES BENZ, que tinha o motor na frente e o bagageiro sobre o teto, com uma escada na traseira, por onde se subia para amontoar as bagagens lá em cima, onde se levava de tudo: até cachorro, galinha e leitão. Ou na “veloz” perua “baratinha”, com capacidade de lotação para oito passageiros (se não me engano): veículo que parecia um fusca gigante, preto. Essas “confortáveis” embarcações saiam de Iporá às 5 horas da manhã e chegavam à capital lá pelas seis horas da tarde. Se alguém pegasse carona em caminhão, no tempo da seca, claro, geralmente só iria chegar ao outro dia à noite. No “tempo das águas”, aí a vida complicava. Gastavam-se três ou quatro dias, se ainda houvesse estrada transitável. Mas, quem tinha dinheiro se livrava de todas essas penúrias e podia desfrutar do privilégio de “andar por cima”, de avião! Ia e voltava contemplando os pobres mortais lá em baixo como formiguinhas pensantes penosamente se mexendo nas suas trilhas estreitas e sinuosas e nos pastos e lavouras!

No tempo chuvoso, que é chamado também de inverno, lá pelos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, quando desandava a chover e parecia que não ia parar mais (o verbo está no pretérito imperfeito, porque hoje já não chove mais assim), até de avião ficava difícil chegar ao sertãozão do oeste goiano ou sair dele. Pois as nuvens, além de “coar dia e noite na peneira de fubá” aquela “chuvinha de molhar bobo”, encobriam ainda a cara do sol, às vezes, por semanas a fio. Nesses dias cinzentos e melancólicos o povo sumia das ruas e o pessoal lá nas fazendas ficava mais por conta de comer e dormir. Trabalhar pra quê? Não adiantava capinar a roça, já que a saroba não morria, só mudava de lugar. Com muita trabalheira se conseguia tirar o leite e aí passava-se o resto do dia “cozinhando o galo”, ou melhor, pamonhas, curau, angu e fritando bolinhos de milho verde. Às vezes, nem o avião DC3 da Real Aerovia Nacional (conhecida com “a Nacional”), com seus 21 passageiros, conseguia aterrissar em Iporá. A bichona chegava e zuava, zuava, zuava, dando voltas por cima da cidade, mas, mesmo com o auxílio do radiofarol, os pilotos não conseguiam ver a pista de pouso e nem quem estava cá embaixo via a aeronave lá em cima. Depois de várias tentativas, ia embora silenciando-se nas profundezas daquele imenso e misterioso oceano de nuvens, sem deixar os que precisavam ficar e sem levar os que queriam partir.

Situação esta que, certa vez, quase terminou em uma tragédia. Depois de vir do Mato Grosso e ter tentado inutilmente pousar em Iporá, o avião foi para Goiânia. Lá, com o tempo também fechado, após várias tentativas em vão, os pilotos foram para Anápolis, sem sucesso também, retornaram a Iporá, onde, mais uma vez, não houve condições pouso. Então, com o combustível já acabando, decidiram ir para Israelândia. Por “misericórdia de Deus”, quando restavam apenas alguns minutos para a queda fatal, surgiu uma abertura nas nuvens que permitiu aos pilotos visualizar a praça da igreja, que era espaçosa e bastante extensa, que ficava no final da cidade, em área desabitada. Sem perder tempo, o comandante mergulhou por baixo das nuvens e aterrissou abruptamente e aos solavancos, em um arriscado e, felizmente, bem sucedido pouso de emergência, para alívio de tripulantes e passageiros, que quase morreram de angústia, medo e susto. Como já estava quase anoitecendo, a labuta continuou até o dia amanhecer, com seu Cunha e o professor Ruy – ambos, respectivamente, agente da companhia e radiotelegrafistas – transportando passageiros, de Jeep e perua Rural para Iporá, debaixo de chuva e enfrentando atoleiros. No outro dia restou para os pilotos, em Israelândia, a desafiadora tarefa de decolar naquela praça que não tinha extensão mínima para decolagem, o que fizeram, amarrando a parte posterior da fuselagem do avião (traseira) com cordas em um tronco que fora bem ficado no chão. Quando os motores estavam na aceleração máxima, as cordas foram cortadas com golpe de machado, liberando a aeronave que já saiu empinada e pegando voo (segundo fiquei sabendo, pois não presenciei!). Uma vez em Iporá, com o tempo em melhores condições meteorológicas, tudo voltou à normalidade.

Foi em uma dessas épocas trabalhosas, que seu Oscar Gonçalves Marques, fazendeiro antigo da zona do córrego do Bugre, daqueles pioneiros que chegaram no início da década de 1940, que ainda mora lá, passou um grande apuro quando vinha de Aragarças de avião. Seu cunhado havia se mudado de Iporá para a região de Poxoréu, nas cabeceiras do rio Garças. Zona de garimpos de diamantes que havia arrastado, desde o início do século XX, muitos baianos e goianos, que sonhavam ficar bem de vida. Mas a sorte grande, além de “fugir do compadre Orozino, deu-lhe ainda uma rasteira”. Pois não pegou diamante que valeu a pena e acabou gastando o pouco que tinha. Seu Oscar, ao ficar sabendo da situação apertada do cunhado, deu um jeito de ajudá-lo. Comprou a passagem na Agência da Nacional, em Iporá, embarcou no famigerado Douglas DC3, e lá se foi, pela primeira vez na vida, pelos ares!

 Todo empolgado ele conta assim a história de sua viagem emocionante e fazendo chacota de si mesmo: “Eu tava custumado a vê a Nacional lá da roça em cima da Serra do Pé de Pato”. “Quando ela ia aterrisá, passava mais baixo que a posição que eu tava”. “Chega dava pra eu vê a cacunda dela!” Lembra seu Oscar. “Mais, minino véio, quando eu entrei no avião, que comecei a vuá, aquilo paricia um sonho!” “No começo, fiquei meio incabulado e o medo me deu um friozinho rúim na barriga, quando o avião merguiô nas nuve, pois a gente num via nada”. “Dispois o avião foi subino, subino, subino até que, de repente o sóu, que eu num via há muitos dia, começou a briá clarinho no céu azu como num dia de veranico”. “Pra quem já tava quais mofano de tanta chuva, aquilo era bão de mais!” “Pois eu sintia como que tivesse plainano levinho pro cima daquela imensidão de nuve branca que paricia um mar briante e sem fim de capucho de argudão”. “E aquilo tava tão bão sô, qui eu nem vi o tempo passá, pois o trem andô de pressa de mais, só gastô 45 minuto pra chegá na Aragarça!” “Aí, eu sinti quando o avião começô a decê, merguiano de novo nas nuve e foi baxano, baxano, baxano até que saiu pro baxo désa”. “Dispois de vuá baxinho uns cinco minuto, aterrisô na santa pais de Deus, no campo de viação!” “A unca coisa que eu num gostei na hora da dicida, foi quando meu istamo deu uma revirada e começo a embruiá, e paricia que quiria saí pela boca”. “Só que eu guentei firme sentado no banco sem maió compricação”. “Mais teve arguns passagero que ‘chamô o Juca’ memo”! “Inda bem que na hora tinha uma moça ajeitada, vistida de saia azu iscuru e de brusa azu crarinho, carçada de sapato de sauto auto, com um boné pareceno de sordado, que trabaiava no avião”. “Na hora ela veio e, dispois de pidi pra nóis apertá o cinto, distribuiu uns saquim de papéu, que no começo num intindi bem pra quê que sirvia, mais dipois fiquei sabeno: era pro pessoau guardá o gumitado!”

Depois de desembarcar em Aragarças, seu Oscar foi para a Barra do Garças, atravessando a pé a ponte do  Rio Araguaia e depois a do Rio Garças, no pontal. Antes, não conteve a curiosidade e parou para observar, admirado, as águas claras do Araguaia que corriam até muito embaixo, fazendo uma divisa lado a lado, sem se misturar com as águas barrentas do Garças. Ao chegar naquela cidade de garimpeiros, onde tinha gente de tudo quanto era canto do mundo, procurou uma pensão para passar a noite. Mas aí, passado o medo do céu, seu Oscar agora ficou com medo na terra. A dona da pensão botou outro hóspede no mesmo quarto. Segundo ele, um sujeito mal encarado, que só tinha a roupa do corpo e ficou fazendo um monte de perguntas e não tirava os olhos da sua mala. Prevenido, na hora de dormir, escondeu o dinheiro num bolsinho da cirola (cueca) e pôs o revolver 38 cheio de balas debaixo do travesseiro.

“No outro dia, já que aquele ‘espírito-de-porco’ não dexô eu durmi direito e não disgrudava de mim”, continua seu Oscar contando sua história, “risurvi procurá a Delegacia de Puliça”: “Incontrei lá um sordado, morenão forte, que me aconseiô”: ‘Óia, seu Oscar, se esse sujeito tentá fazê arguma coisa com o sinhô, manda ele pro inferno, mete bala e deixa lá, e num pricisa preocupá não, que o resto nóis resorve’. Passados uns três dias, por fim, conseguiu ajustar um caminhãozinho GMC, para ir buscar o cunhado com sua mulher e os bagulhos da mudança, ficando assim livre daquele estrupício, sem precisar atender ao conselho do soldado! Depois de um exaustivo dia de viagem, enfrentando chuva e atoleiros, conseguiu chegar ao destino procurado. Após pernoitar, jogaram as malas na carroceria do caminhão, pois resolveram vender os cacarecos de móveis, já que, naquelas alturas dos acontecimentos, só se conseguia voltar para Iporá por via aérea. Mais um dia de viagem de volta, enfrentando, outra vez, chuva e lama, chegaram a Barra do Garças. No outro dia foram para o aeroporto da Fundação Brasil Central, na cidade de Aragarças. Ali seu Oscar comprou as passagens e embarcou com os parentes no mesmo avião, no qual viera, para viver uma nova e assombrosa aventura na volta para casa, como conta com detalhes:

“Aí, quando nóis imbarcô de novo, o tempo tava mais fechado ainda, que quando eu fui”. “Era só chuva e aquêl céu tampado com as nuve incubrino as serra e os morro”. “Eu me lembro direitinho que o avião levantô vou pro lado do nascente”. “Mais, em vêis de virá um poco pra direita, que era o rumo certo de Iporá, e passá pro cima das nuve, como fêis na ida, êl continuô vuano pro baxo das nuve”. “Da jinelinha eu pudia vê a terra pertinha da gente”. “Eu num tenho istudo, mais intendo bem de direção”. “E aí, fiquei biservano e vi quando nóis travessô o rio Caiapó e o avião continuô ino na mesma direção”. “Quando ele chegô no Rio dos Boi, pendeu a asa pra  direita e virô siguino pela caia do rio acima, mais o meno pro lado do su, vuano tão baxinho que paricia que ia tocá na grimpa das arve!”

Aí só via gente rezano pra Deus e tudo quanto era santo”. “A eromoça, procurô acarmá o pessoau do avião, dizeno que quilo era um procedimento, normau, quando o tempo tava daquele jeito”.  “Mininu véiu!” “Aquele baruião dos motor fêis o povo, lá imbaxo nas fazenda, ficá disisperado”. “Tinha gente que tava no currau tirano leite e quando ouviu aquele urro assombroso e viu aquela coisa esqusita vino na sua direção, largava o barde de leite par lá, dechava as vaca piada e fugia disparado pra dento de casa”. “E os que tava dento de casa, que saia pra vê o que é que tava aconteceno lá fora, quando via aquela coisa monstruosa com as asa aberta urrano, sem sabê se vinha pra pegá ô se ia caí, botava as mão na cabeça e, gritano disisperado, vortava correno pra iscondê”. “As vaca, os bizerro, os boi e os cavalo, isparramaro  correno apavordo pra tudo quanto era canto no pasto! “Até os porco, as galinha e os pato corria arvoroçado”.

“E assim, o avião cuntinuô naquele disatino, siguino o Rio dos Boi acima até quando eu vi que agente passô pro cima do Aropi, que é Diorama hoje”. “Aí o rio fêis uma curva pra isquerda e o avião cuntinuô reto e na mesma artura”. “Dispois de argum tempo a genti passô pro cima da cabicera do corgo Tamanduá e, dexano o Morro do Macaco a isquerda, logo o piloto imbicô a Nacional no rumo do campo de viação de Iporá e aterrisô tranquilo e sem pobrema”. “Quando nóis botamo os pé no chão, demo graças a Deus e o coração, que paricia que ia saí pela guéla, vortô a batê normau de novo!”. “Ainda bem que nóis consiguiu sigurá o barro…, pra num sujá as carça…!” “Aí, logo que os passagero, que tava isperano  imbarcô, o avião levantô vou e sumiu de novo no meio das nuve, disimbestano no céu, lá pras banda de Goiana”. “E nóis fomo pra casa, na fazenda, cuidá da vida”. “Mais pra falá a verdade, eu levei muito tempo pra isquecê os apuros passado nas arturas e de vêis inquando eu ainda sonhava com aquela tribusana toda”.

Embora a aeromoça, aparentando-se calma, com seu ar de tranquilidade e um largo sorriso nos lábios, ter explicado que não estavam correndo perigo, procurando tranquilizar os passageiros de que aquele era um procedimento normal, quando as nuvens estavam muito fechadas e o teto de voo muito baixo, o certo é que, naquele dia, todos, inclusive a tripulação, passaram muito medo. Aliás, isto, de fato, frequentemente acontecia no tempo do inverno chuvoso, quando os pilotos, por questão de segurança, voavam não só na calha do Rio dos Bois, mas também do Rio Caiapó e do Ribeirão Santo Antônio até avistar o aeroporto de Iporá. Assim, evitavam o risco de chocarem com serras e morros na hora de pousar, caso voassem sobre as nuvens, mesmo dispondo de aparelhos que os auxiliavam. O pessoal que tocava roça em cima da Serra do Pé de Pato, já estava, como seu Oscar disse no início de sua história, acostumado a ver o avião passando, muitas vezes banhado pela garoa do inverno chuvoso, abaixo da linha do horizonte, quando se preparava para aterrissar.

Aventuras e desventuras dos tempos de nossos pais e avós pioneiros que devemos sempre relembrar, a fim de não esqueçamos que a vida nem sempre foi tão fácil e confortável como é hoje e, assim, saibamos ser gratos a Deus e a eles que trabalharam tanto para que chegássemos onde estamos! Realidade que seu Oscar reconhece e agradece por vivenciá-la, já com seus 98 anos de idade.

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