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Parte II de iporalidades: a máquina de arroz da família Gonçalves

No texto anterior, compartilhei um pouco da história da Cerealista Gonçalves, uma das últimas em funcionamento em Iporá. A partir da memória de Divino Gonçalves, o administrador do empreendimento, retomo a reflexão a fim de apresentar aspectos da experiência do cerealista que nos auxiliam na compreensão da vida cotidiana dos iporaenses e da dinâmica cidade-campo nas últimas décadas do século passado.

Divino se lembra que, no passado, cerca de vinte cerealistas existiam em Iporá, o que nos permite levantar considerar que a rizicultura tinha um papel importante na vida econômica da região. De memória, ele menciona os estabelecimentos de Divino Diniz, na avenida Pará, e do Zezão, na avenida Rio Claro. Todas elas, a julgar pelo depoimento do entrevistado, eram lugares movimentados e de sociabilidade, como também percebeu meu conterrâneo Gleidson de Oliveira ao pensar em aspectos semelhantes da história e da sociedade da cidade de Inhumas.

A vida na cidade, como lembra Divino, significou em sua juventude o acesso às possibilidades que a vida rural não lhe garantiria. A sociabilidade e o entrosamento na cerealista são representados por ele como momentos formativos que o ajudaram a se dedicar a outros ramos profissionais, como o transporte escolar: “(…) estar no meio dos negócios, das coisas acontecendo, (…) tive que aprender a gerir na escola da vida”, argumenta. Em termos um pouco mais sociológicos, a vivência daqueles dias garantiu a Divino o capital social necessário para, em uma cidade pequena onde todos se conhecem, conquistar a confiança e diversificar satisfatoriamente seus empreendimentos, como também fez seu pai.

Sobre seu pai, Floriano, o entrevistado sustenta que ele tinha bom tino para os negócios, embora não tenha contado com a oportunidade de se alfabetizar. Floriano aproveitava o movimento da cerealista para desenvolver outras atividades comerciais, atendendo os demandantes do campo que precisavam de mais do que arroz beneficiado. Ele fazia fretes, comprava animais e deixava aos filhos grande parte do trabalho da cerealista. Naquela época, a zona rural e Iporá não eram realidades estanques. Longe disso! O pai de Divino era um agente do vínculo dinâmico entre as duas realidades, talvez um indivíduo inquieto, mas certamente um sujeito experiente que condensava em sua experiência o pertencimento simultâneo ao campo e à pequena cidade. Podemos imaginar que essa condição era um facilitador para qualquer comerciante em um contexto de urbanização incipiente. Em suma, Floriano era um trabalhador versátil, um “faz tudo”, algo natural nas comunidades mais tradicionais, como era Iporá na época, onde havia pouca ou nenhuma especialização do trabalho.

Alguns episódios narrados por Divino capturaram minha atenção e merecem destaque. Certa vez, portugueses que visitavam a cidade apareceram na cerealista espantados com a existência do estabelecimento. Eles disseram a Divino que lugares como aquele inexistiam do outro lado do Atlântico há décadas e que os conheciam principalmente por intermédio das histórias dos mais velhos. Em outro momento, uma iporaense que já não vivia na cidade há muito tempo apareceu na entrada do estabelecimento atraída pelo cheiro característico da palha de arroz, que a fez rememorar, em um momento de sinestesia, sua juventude. Por último, o entrevistado comentou sobre a frequência do reparo do maquinário, que no passado acontecia a partir da visita regular de um técnico vindo de Goiânia, mas que hoje é feito por ele mesmo devido à falta de mão-de-obra especializada. O técnico, aliás, faleceu há alguns anos e com ele parte de um conhecimento particular e hoje certamente escasso.

Engana-se quem pensa que as correias do maquinário não se movimentam mais. Divino informou que alguns poucos plantadores locais e outros de cidades mais distantes, como Barra do Garças e Piranhas, recorrem aos serviços oferecidos por ele. Há pouco mais de dois anos, a cerealista processou 700 sacas de arroz vindas de uma lavoura comunitária de Santa Fé de Goiás, a 120km de Iporá. Como a cerealista não é a principal fonte de renda de Divino e a demanda não é a mesma de antes, o tempo de processamento do grão é maior do que no passado. Mais importante do que isso, contudo, é o fato de que Divino mantém a cerealista ativa também para fazer companhia para a mãe e oferecer os cuidados que ela merece. O afeto, além da eletricidade, movimenta as correias do maquinário!

A máquina da família Gonçalves experimentou seu auge em um contexto em que consumíamos o que era plantado na região e não estávamos condicionados, de forma absoluta, às flutuações da bolsa de Chicago. Ao contrário do que nossa primeira impressão informa, o maquinário para polir o arroz é um instrumento concebido no início da modernidade para aliviar o manuseio tradicional do grão, ou seja, a máquina é um artefato modernizador. Entre nós, ela sintetizava dois tempos: o da agricultura familiar tradicional e o do processamento automático moderno e urbano, cada vez mais sofisticado. Sua atuação se justificava pela relevância da rizicultura, que durante parte da história agrícola de Goiás teve um papel importante como cultura de abertura em favor da “domesticação” do solo nas regiões de fronteiras agrícolas, como ensina Abel Ciro Minitti Igreja e outros em um estudo feito na década de 1990. Passada essa etapa, cujo ápice parece ter sido nas décadas de 1970 e 1980, a rizicultura goiana perdeu espaço para outras culturas mais promissoras economicamente. Em Iporá, tudo indica que cerealistas foram muito movimentadas e atuantes até o início dos anos 2000.

Hoje, a máquina de arroz da família iporaense é apenas uma versão mais antiga de um tipo de maquinário que continua realizando o polimento do arroz, mas bem longe daqui. O que a separa das versões mais atuais não é apenas seu tamanho, sua sofisticação ou sua capacidade de processamento, mas também o fato de que novos arranjos produtivos e comerciais tornam a máquina local menos “útil”, razão pela qual ela nunca foi substituída por uma mais avançada. Em outras palavras, sua “desatualização” tecnológica é indissociável das mudanças na agricultura e da afirmação dos supermercados nas últimas décadas do século passado.

Os dutos do maquinário, que transportam o cereal até a câmara onde acontece o polimento, são os articuladores da memória da família de Divino. A máquina imprime coerência ao passado e organiza eventos da vida familiar até o presente. Suas décadas de funcionamento explicam o sucesso dos filhos, que se tornaram bons profissionais graças à cerealista, sustenta orgulhosamente Divino. A memória familiar, portanto, é organizada a partir da importância do maquinário na vida de três gerações!

Para além da experiência individual, o breve relato de vida de Divino nos esclarece acerca da maneira como as pessoas gerenciam suas lembranças em torno de alguma atividade profissional, mas também nos informa um pouco sobre o cotidiano de mulheres e homens que não aparecem na memória histórica consagrada. Por esse motivo, conhecer um pouco da vida de Divino e de sua família ajuda na compreensão do passado coletivo, a partir daquilo que muitos podem considerar corriqueiro ou trivial. Essa forma de pensar a história abre o tempo vivido, mas também o presente, para uma perspectiva popular atenta ao cotidiano de mulheres e homens que, no anonimato da vida simples, sustentaram a cidade. Esse é o principal caminho para desvendar as poéticas sociais dos diversos “Iporás” que convivem, se tensionam e se justapõem.

Pesquisa e texto do professor João Paulo Silveira, Doutor em Sociologia (UFG), Professor do Curso de História da UEG, Câmpus Iporá e do Programa de Pós-graduação em História do Câmpus Morrinhos. Membro do Núcleo de Estudos da Religião Carlos Rodrigues Brandão – FCS-UFG

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