“Eu fui passear na cidade
Só numa ‘vorta’ que eu dei
A mula deixou saudade no lugar onde passei
Pro mulão de qualidade
4 milhão enjeitei […]”
Composta por Raul Torres (1944) e popularizada nas vozes de Luiz Gonzaga e Tonico e Tinoco, a Moda da Mula Preta completa 80 anos e continua a ressoar nas ondas da cultura de Iporá. Desde que as mulas passaram a desfilar na cidade, em 2008, elas atraem uma multidão, anunciando o início de mais um evento da Associação dos Muladeiros do Oeste Goiano (AMOG). Ao final, elas deixam a saudade por onde passam. Toda essa homenagem não é sem razão: as mulas desempenharam um papel significativo na história brasileira, contribuindo para a formação da cultura goiana mais do que o pequi, e impulsionam um considerável mercado de muares (burros e mulas). Por esse motivo, elas merecem o protagonismo que transforma a festa de Iporá no maior encontro de muladeiros do país.
Como resultado do cruzamento entre o jumento e a égua, as mulas herdaram capacidades físicas que as tornaram mais robustas e resistentes, transformando-as, ao longo da história, nos melhores animais de carga para enfrentar os desafios das diversas trilhas. Foram introduzidas no Brasil sob a influência das tradições espanholas nas colônias vizinhas e se disseminaram nessas terras com o desenvolvimento da mineração, após 1701 (século XVIII). Em média, as mulas transportavam entre 100 e 200 kg, percorrendo entre 13 e 17 km por dia, podendo, se necessário, cobrir distâncias muito maiores (embora não recomendável).
No rastro das relações coloniais, sob o lombo das mulas e as tradições, por vezes, pouco amistosas que aproximaram bandeirantes, nativos-indígenas e negros escravizados, o sertão brasileiro foi sendo desbravado, criando uma cultura “cabocla caipira” repleta de saberes e práticas tropeiras: a comitiva de gado, a agricultura familiar, a gastronomia (destacando o feijão tropeiro) e a vida simples no campo, regida pelo som da viola que entoava causos e saudades daqueles que passavam meses “tocando em frente”, como Almir Sater e Renato Teixeira cantaram.
As tropas de muares foram os principais meios de transporte, possibilitando a integração brasileira até o final do século XIX, por volta de 1870, quando começaram a competir com o trem e a emergente estrada de ferro, inicialmente presente em áreas limitadas do país. Mesmo assim, as mulas continuaram a interligar regiões distantes ao longo de grande parte do século XX, perdendo espaço com a popularização dos veículos motorizados e o advento das estradas modernas. Em virtude de tudo isso, compartilhando seu status com gado e cavalos, esses animais foram fundamentais para a formação do território central e da alma sertaneja brasileira.
E engana-se quem pensa que elas estão desaparecendo. O mercado de muares vem crescendo consideravelmente, incorporando melhoramento genético, ganhando prestígio e movimentando milhões. No país, existem diversos eventos e associações cadastradas, com inúmeras histórias de mulas comercializadas por valores entre 50, 100 e até 200 mil reais.
Neste mês de janeiro de 2024, a festa da AMOG é novamente aguardada e promete trazer para Iporá centenas de mulas e milhares de pessoas das mais diversas regiões, incluindo países vizinhos. Quem participar poderá acompanhar o desfile das estrelas principais e uma série de outras atrações, como queima do alho, exposições, shows, negócios, concurso de beleza e toda a festividade que toma conta das ruas da cidade. Este é um dos maiores eventos da região. Contanto que as mulas sejam muito bem tratadas, que permaneçam passeando pela cidade, despertando a saudade e a gratidão!
Autor:
Leonardo Lossol (Doutor em História pela UFG e professor do Instituto Federal Goiano, campus Iporá).