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Um conto premiado de autoria de gente da terra

Mauro Leslie ficou em primeiro lugar em contos no Concurso Lacordaire Vieira, com o trabalho “Celícia de Pano” e recebeu premiação que inclui também valor em dinheiro.

Mauro Leslie é jovem autor que já acumula vários prêmios conquistados em concursos literários. Inclusive, não é a primeira vez que ganha prêmio neste mesmo concurso. O último livro publicado por Mauro Leslie foi “Funeral da Primavera”. Sobre o conto agora premiado a Comissão Julgadora do Concurso Lacordaire Vieira avaliou que “Celícia de Pano” se trata de tragédia humana onde uma criança de quatro anos é assassinada sem precedentes e sua morte é razão da loucura de seu pai, um maestro, que termina os seus dias de vida num sanatório, soprando um pedaço de pau na perspectiva de estar dando fôlego a filha morta.

O CONTO

Do cerrado

Ainda a hereditariedade engordurando-se, inchando, acumulando os caracteres da herdade. Ainda os compêndios da sua telúrica em químicas retorcidas, retorcendo, emaranhando a tônica, os delírios, sonhos, virtudes e desvirtues nas almas dos indivíduos. Ainda o contrapeso grave da vida, a gravidade terrosa das dores do mundo. Ainda o cerrado que se estalactite pra dentro do ar, eloquente, deformando os ossos do vazio, como se o ser e estar fossem negados, e de teimosia os ramos rompessem à lógica; ainda a serpente cósmica, a cingir a terra, enroscada na altura dos seus abismos, dardejando os botes das dificuldades, da aridez, do escabroso; de tudo que não é e passa pela garganta dos rasgos inapeláveis do vir a ser; ainda os galhos das árvores do cerrado espetando o espaço, ressurgidos em contorcionismo de entre as pedras, o ar, o mundo, sulcando os ventos, as nuvens, o sol; a semente rompendo as impossibilidades do solo inóspito, lança-se nesta paisagem avessa, escalavrando as intempéries o mistério do mistério do cerrado.

Ainda refletindo as árvores do cerrado no lustro e para-brisa da Caravan negra e rútila descendo lentamente pelas ruas em paralelepípedos do lugarejo. Régis ao volante, Gabriela e seus dois tios no banco de trás. Seguem sacudidos pela trepidação do carro nos becos de Aloândia. Descia embalado, para não dizer e já dizendo, pelo desgovernado anos oitenta, a poeirenta década de oitenta ladeira a baixo.

Na cozinha (da maioria das casas de Aloândia) as prateleiras forradas de branco e bordados exibiam chaleiras, bules, caçarolas, amolados, polidos, reluzindo alumínios que alumiavam tanto a ferir as vistas. Nas paredes, quase sempre envelhecidas, a costura silenciosa dos calendários precisavam maio de uma segunda-feira. Do lado de fora pardais, canários, ao fundo pombas do bando nas grimpas reverberam à tarde dos seus cantos esparramados que ficaram em nossas memórias por toda a vida; galináceos nos quintas e ruas, num sol de evaporar o mundo..

 A chegada

Chegam. Gabriela, Régis e os tios. Antes de saltarem do automóvel, sóbrio, auréola sapiente, centrado, Jó, que já aguardava à porta do estabelecimento, avança os braços para dentro da lata negra, rútila, e abraça a garotinha. Sem palavras, demoradamente abraça. Com a criança para junto do peito dirige-se a outro carro e desaparece.

À escuridão de nenhuma luz

Quando a noite começava a vestir de noite o dia; as sombras avançavam nos paredões, montículos e várzeas; quando a melancolia debulhava sua agonia no peito dos homens; quando as presilhas da noite eram abertas e entornadas nos sentimentos das pessoas; quando as luzes amarelecidas e baças nos postes de aroeira do lugarejo começavam a se ascender: a poeira mais se levantou para ver e anunciar a tristeza e revolta daquele homem. Tinha ele toda gravidade do mundo em seu peito apertando; cingia-lhe profundamente no pescoço as cordas da escuridão.
Graça, luz, sons, embrulharam-se pesados e mudos em si. Ignoto e místico o gato fitava o nada. Grilos calaram de cantar; o vento prendeu o fôlego e todas as estrelas pestanejaram demoradamente. Tudo espreitam silenciosos e tristes o maestro Jó. Saiu do Corcel embaçado de bege e terra. Trazia sua filha Gabriela e uma flauta que de tanto resplandecer dourados feriam as vistas. Enfia o carro quintal adentro. Portões, portas, janelas, ele taramela tudo.

Fé – senão, por Deus.

Ergueu sobre o corpo singelo e frágil da criança — firme e convicto. Certo de que aquilo era exato e solúvel, não pensou em Deus, não sentiu culpa ou medo, não pensou na esposa Eloísa. Ali, apenas o silencio de ovo e cova; seu mundo, o centro do mundo egoísta, egoísmo, ego,ísmo, imo, ima, o imã do ego, a força de atração da existência focada em si — Ergueu triunfante sobre a paz luminosa de estrelas distantes da menina, a flauta. Focou, soprou como se soprasse a criação de Deus — no princípio era o verbo. Certo de que o sal, enxofre e mercúrio da vida podiam ser pastoreados por sua flauta. Ele soprava, soprava, e a noite forrava seu peito, o mundo, Alôandia, as árvores do cerrado.

 Na desesperança das salas

— Ele está louco! O que houve? Chamem a polícia! Cadê seus irmãos Régis? Na casa de sua mãe, já foram? Nada? — falava exaltado, gesticulando, num fôlego só, o tio de Gabriela, Luiz. Morta para si e para fora de si, Eloísa, a ninguém se dirigia, nem olhar, atenção, indagações. Olhos mortos. O corpo apenas, sem alma, inerte a mirar uma parede encardida. Na sala primeira, de porta pra rua, ela debruçada em si mesma é acalentada por uma amiga. Pessoas chegam, são muitos. Onde? Cadê? Como? Já eram para mais de zero hora e alguns começavam a perder a razão, o sentido das coisas. Régis aos berros execrava Jó; depois tinha pena do pai de Gabriela. Os castiçais onde iriam às velas estavam vazios, ainda. O caixãozinho não chegou a sair da funerária. Todos na cidade, envolvidos, preocupados, não se ouvia outra coisa: cadê o maestro Jó? Os homens saiam em grupos pelos sítios mais próximos. Um cabo, dois soldados e muitos voluntários procuravam por toda parte.

Da úvula de Deus

A Flauta em miríades de sons e metais liquefeitos estalando em dosséis e ventos por toda madrugada. Cria, tinha fé de grão de mostarda. Queria recriar o sorriso dos céus nas faces arroxeadas de Gabriela. Os suplícios tristes e apelativos da flauta de um pai louco, desesperado. Tentava soprar a vida novamente nas narinas da filha de quatro anos. Esperava que os salmos mágicos dos acordes e harmonias das músicas levantassem novamente aqueles olhos. Como se ali fosse Hamelin; como foi dado a Lázaro novo hálito; como átomos girando em torno da coisa por nascer; como no princípio: as raízes da matéria respondendo ao som — no princípio era o verbo. Jó soprava, soprava, e soprava.

O fato – Lei que tudo e a todos rege.

Ferido de faca, agudamente de morte e tragédia, naquele dia, pela manhã, quando na folhinha ao lado da prateleira lindamente alumiada de alumínios, denunciava que todos os outros dias da semana dormiam e vigiava, então, segunda-feira. Duas crianças manipulavam a arma do pai. Tolices, descuidos, os meninos brincam com o corpo do delito atirando em uma placa de sinalização. Uma das balas, feito cometa vagabundo, assovia fino, retalhando, abrindo em bandas as carnes do vento. O pedaço de metal faz o arco no espaço quente, empoeirado das sombras de Alôandia. A medida, o itinerário numa senda exata — bem no meio da cabeça, a joça de chumbo revestida de estanho atravessa os miolos do crânio infantil — agonizava Gabriela tendo Cecília, a boneca de pano, embaixo do braço, Gabriela para um lado a boneca a meio metro do seu corpo recebia os esguichos do sangue que saltavam do crânio da filha do Maestro.

Existia, a cinco quilômetros do lugarejo, uma casa de mulheres, cabaré. O acidente com Gabriela ocorreu na segunda-feira, dia em que o estabelecimento se encontrava fechado, e fechado ficaria até na quinta. Ali – Jó chegou. Adentrou. Passaram-se dois dias desde que chegara e estendera sua filha numa mesa de ferro, dessas cedida pela fabricante de cervejas Antarctica. Alguns moradores e os dois policiais invadiram o recinto depois de localizarem seu Corcel I do lado de fora. Violaram a porta. Jó sequer dirigiu o olhar a eles. Apenas continuava a tocar. Soprava e soprava. Sem forças, o som falha, quando saía era baixinho. Ela já com o corpinho rígido. Manchas rochas, o rosto alvo, branco como neve, debaixo de cachinhos louros. Os homens agarram-no pela cintura para tirá-lo dali, ele gritava abraçava-se na coluna de angico do barraco. Agarrava filha com as unhas, pelos cabelos.

Fé – senão o avesso de Deus

Melissa, sobrinha de Eloísa, filha de um dos tios, Luiz, que acompanhavam o corpinho de Gabriela na Caravan preta, entram no manicômio. “Aquele, minha filha, veja.” — diz Eloísa em lágrimas, voz estreita, espremida, apertada. Melissa dobra os joelhos, genuflexa, solta um grito “não!?” afirmando, duvidando, implorando.“Não pode ser, não deveria ser, meu Deus!” Seu temperamento daquele dia em diante teria a sombra, o choro, a cisão, a cicatriz do trauma que aquele testemunho causara. Haviam se passado vinte anos desde a tragédia em Alôandia. Sua Tia Eloísa nunca tivera coragem de contar que o tio, Jó, vivia, e que desde a morte da filha nunca mais se recuperou. Jó era o ídolo de Melissa. Tudo guardava do tio. Em tudo era igual a ele, inclusive o dom para a música, inclusive a paixão pelo mesmo instrumento. De tanto insistir, Eloísa, resolve revelar tudo a jovem. Leva-a para conhecer o Flautista, Maestro Jó, como todos o conheciam. Melissa tinha os originais das composições do tio e tocava todas suas músicas. Formada em música pela Universidade Federal do Estado de Goiás e com especialização em flauta doce. Genuflexa, as mãos sobre o rosto, olhava o tio pela primeira vez, pois, nasceu um ano depois da morte da prima. Ele apresentava-se muito doente, definhado, as pernas visivelmente atrofiadas. Cabelos e barbas enormes. Sobre seu colo, Cecília — a boneca de pano que fora da filha Gabriela. Ele com um pedaço de cabo de rodo soprava, soprava e soprava — ainda.

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