Ao debruçar nas inúmeras pesquisas sobre os possíveis fatos ocorridos no antigo Distrito de Rio Claro durante o século XIX, uma publicação de 1888 no Jornal O PUBLICADOR GOYANO sobre a venda de uma propriedade rural, a princípio me passou despercebido, porém, após releituras, uma informação me chamou a atenção. Vejamos o conteúdo da referida matéria anunciando a venda da propriedade rural:
Um ovo por um real!
Vende-se um grande sítio de lavoura, creação de gado e indústria da carne, nas imediações do rio Pillões, na freguesia do Rio Claro.
Contendo: grandes mattas virgens para plantações; muitos campos pra creação; rios piscosos, auríferos e diamantinos; casa de telha com grandes cômodos para residência; quintal cercado de aroeira; paiol grande coberto de telha; pasto gramado e vallado, com a extenção de 12 alqueires de planta; curral grande, cercado de aroeira; engenho de canna; alambique e seus pertences; 100 cabeças de gado vaccum e cavallos para o seu custeio.
Tudo pela insignificante quantia de 3:000$000.
Quem pretender comprar este estabelecimento dirija-se ao mesmo, para ver e crer, onde encontrará o seu dono.
Jeronymo Gomes Pereira
(O PUBLICADOR GOYANO. 1888, Ed. n⁰ 0172, pg.4)
(Obs: mantivemos a grafia original de época, bem como os termos e medidas)
O título da matéria por si só já é chamativo, pois, a moeda que circulava no Brasil Império era o Real, porém, a inflação e a consequente desvalorização da moeda causavam valores na casa das centenas para gêneros alimentícios básicos.
Se uma Galinha custava em média $320 (trezentos e vinte réis), um ovo não custaria apenas 1 real. Era claro a intenção do título do anúncio, chamar a atenção para algo que estava sendo vendido muito barato. Uma propriedade com tantas benfeitorias sólidas e que com certeza demandaram tempo e mão de obra, tão próximo à Capital da Província, e as margens da estrada que ligava a Capital ao rico Distrito de Rio Claro, sendo vendida “pela insignificante quantia de 3:000$000” (três Contos de Réis); algo me pareceu um tanto suspeito.
E ao estudar e pesquisar o proprietário do anunciado imóvel, o Sr. Jeronymo Gomes Pereira, conseguimos traçar uma perspectiva da realidade que se desenrolava no Distrito naquele período. O Sr. Jeronymo Gomes fora um importante fazendeiro do distrito, chegando a exercer em 1875 o cargo de 2⁰ Supplente de Subdelegado (mesmo que o cargo fosse mais simbólico e um status do que uma função efetiva).
O fazendeiro Jeronymo Gomes Pereira estava desanimado e sem esperanças para continuar no rico Distrito de Rio Claro; motivo? Não, não era nenhuma estagnação econômica ou mesmo decadência da mineração ou do garimpo de diamantes. A economia crescia e as criações de gado proliferação. O motivo eram os constantes ataques dos implacáveis índios kayapó.
Algumas publicações da época nós desvendam a agonia do fazendeiro Jeronymo Gomes Pereira e tantos outros que se propunham a se estabelecerem como um enclave nos sertões do Gentyo kayapó:
Só há actualmente, á margem do Rio Claro, a jusante da povoação, um morador, capitão Joaquim Bernardo de Oliveira, que morava a trez léguas do arraial; os mais como Joaquim Maldonado, Francisco Maciel, Manoel Maciel e outros, retiraram-se enxotados pelos índios, quando há dous annos foram elles atacados, morrendo um camarada, uma.mulher, uma creança e uma escrava.
A mulher – Maria Dionísia – era irmã do informante Innocêncio de Alencastro, foi accometida a trez quartos de légua da fazenda dos Pillões, e morta a cacête na roça. Pelos vestígios deixados via-se que a turma d’elles era numerosa, e por alguma razão deformaram os órgãos sexuais da victma.
Pertence a fazenda dos Pillões onde mora Innocêncio, pequeno lavrador; à Jeronymo Gomes Pereira, e fica a duas léguas aquém do arraial do Rio Claro, a um quarto de légua do Rio Pillões, e à beira da estrada que vale d’esta Capital.
N’esta fazenda mora também o sr. Messias José de Freitas, que residia no rio Pillões trez léguas montante, e que d’ahi sahiu com o receio dos índios, e por causa dos prejuízos que delles sofreu.
Ainda o mez passado, a uma légua do arraial foi vista uma batida indicando a passagem de grande número de selvagens, vindos da Cayaponia em demanda do rio Pillões, onde já existem grupos d’elles, e que vivem espreitando as fazendas.
Seis léguas acima do arraial, em 12 de outubro de 1886, mataram o fazendeiro Jeremyas Gonçalves Manso, queimaram um carro ferrado para tirarem a ferragem, mataram bois, dous cavallos, picaram cangas e conduziram alavanca e outros objetos de ferro. Este último facto se deu oito dias depois do assassinato da Dionísia.
Em fins de janeiro ou princípio d’este, faz um anno, que bateram na fazenda São Domingos, onde flecharam um menino, e carregaram uma foice, oito dias depois deram na casa de Moysés de Tal, a sete léguas de São Domingos, nas águas do Turvo, onde mataram dous camaradas, que estavam no matto rachando aroeira.
Um primo do informante, José Alves Ferreira, e cunhado de Manoel Fernandes (importante fazendeiro da região com mais de 2.000 reses), foi há quatro annos atacado em sua casa, a dez léguas acima do arraial, pelos índios, em número de uns cinquenta; sendo porém, só dez os que avançavam, e com certas formalidades de manejo béllico, permanecendo os outros mais afastados.
Crivaram a casa de flechas, que contudo não offenderam o primo do informante, que se esquivava d’ellas refugiandi-se atrás de uma porta de burity. Cansado de resistir sem poder atacar, porque a espingarda de dous canos que tinha estava sem ouvidos, e vendo baldados os rogos que dirigia aos índios de se ausentarem, desattendendo ao convite que lhe fazia o sogro de sahir do terreiro e entrar para a casa, revestiu-se de energia, e, alçando a faca que empunhava, partiu sobre os selvagens no propósito de esfaquear os que podesse, embora por sua vez cahisse victma d’elles. Valeu-se desse acto de resolução, porque os índios evitaram o choque fugindo.
Vestindo-se então de homem as mulheres que havia na casa, para impor algum respeito aos selvagens, e carregaram o que puderam, partiram em direção à casa de Manoel Fernandes, cunhado e tio do atacado.
Os cayapós, que viram abandonar a casa não tardaram em invadi-la, para saquarema o que lhes fosse útil, como os sacos que continham café, assucar, sal, farinha, que despejaram de mistura no chão, para só levarem o que lhes interessava: o panno.
Uma Machina de costura, que carregaram, foi depois encontrada no campo sem certos ferros que poderiam arrancar; um crucifixo, que conduziram, foi encontrado perto de córrego enterrado pela cabeça.
Como, porém, d’ali seguissem para a fazenda de Manoel Fernandes, foram no mesmo dia rechaçado, ficando acho alguns mortos.
Em dezoito annos, que mora José Alves Ferreira no districto do Rio Claro, teem morrido trucidados pelos índios umas oitenta pessôas conhecidas e enumeradas, entre as quaes, fazendeiros de força, moradores do Rio Verde, Jatahy, Rio Bonito e Rio Claro.
Jornal O PUBLICADOR GOYANO – O Far-West do Brazil VIII (parte 1). Sexta-feira, 03 de Fevereiro de 1888, Ed. nº 124, pg. 1-2.
Viver e morar no sertão goiano durante o século XIX requeria muito mais do que vontade e oportunidades, aos colonizadores do Oeste Goiano exigia-se resiliência, audácia, coragem e camaradagem para com o vizinho. Não querendo ser visto como um historiador que toma partido dos colonizadores e desfrauda a história e importância indígena, mas como um expectador da vasta e rica história regional que por séculos, a historiografia regional optou por criar heróis e por consagrar uma (su)posta decadência e lacuna historiográfica de Iporá.
Se o sr. Jeronymo Gomes Pereira conseguiu vender dia propriedade? Por certo sim, pois em 1890 ele é listado como jurado do Tribunal do Júri, porém, pó Distrito da Barra (localidade mais próxima da Capital). Em 1910 e 1912 ainda aparece em algumas publicações como jurado na Comarca da Capital. Em 1910, tentou uma requisição junto ao Conselho Municipal da Capital (uma espécie de Câmara de Vereadores da época) a arrematação do direito de operar e administrar o rego d’água que abastecia a capital e o abatedouro municipal, seu pedido foi indeferido.
Em publicação de 12 de fevereiro de 1916, o jornal Correio Official de Goyaz, em sua edição nº 000055, Jeronymo Gomes Pereira era exonerado da lista de eleitor da Capital, pois, havia falecido.