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Conhecimento, saber e verdade

Um texto de Alan Machado

Um dia desses, numa discussão a respeito da pandemia, um professor me pediu para falar sobre ciência. A impressão dele era de que as pessoas geralmente confundem a ciência com a verdade. A questão é espinhosa, pois quando se pede para não confundir ciência com verdade se está inferindo de antemão também que ciência não é verdade e que, portanto, ambos os campos são imiscíveis. Ocorre que, nessa seara, é difícil estabelecer aquilo que se quer quando se está pensando em algo puro. A própria multiplicidade de percepções que cerca as ideias de ciência e de verdade já diz algo inquestionável: não há nada de absoluto nesses dois reinos.

A alethéia grega, se entendida ao pé da letra, no cerne da palavra, já abre o caminho para dúvidas: alethéia, traduzida por veritas em latim e verdade em português, é a junção de a (não) + lethos (esquecimento), ou seja, verdade é não esquecimento. Aquilo que não é esquecido é a verdade? Pensem nas consequências perigosas de ler a verdade a partir do que o termo grego oferece na planície de sua literalidade. Não quero dizer com isso que o sentido se resume a sua literalidade. Levando em conta apenas o literal, vejam aquela máxima atribuída a Goebels, por exemplo, de que uma mentira, se repetida mil vezes, vira verdade. Ela encaixa-se perfeitamente nessa ideia de verdade como não esquecimento, mas não na ideia clássica de que a verdade é aquilo que é incontestável nos fatos ou nas palavras. A propósito, me parece que os criadores de fake news da atualidade entendem bem dos efeitos implacáveis do não esquecimento. Associam algo falso, negativo ou positivo, a determinada pessoa e repetem à exaustão, de modo a tornar impossível o esquecimento. Assim, a mentira vira verdade! Por esse viés, repetir está vinculado a não esquecer. Óbvio que é preciso se perguntar sempre: não esquecer o quê, cara-pálida!

Seguindo o raciocínio produzido a partir da observação literal do termo alethéia, poderia dizer, então, que o que é esquecido não é verdade e, se é esquecido, em tese, não se repete. A verdade é aquilo que se repete. Porém, ao contrário do que ocorre com as fake news, nem tudo que se repete é falso. Nessa perspectiva, posso afirmar que é verdadeira a asserção: o homem é um animal que fala. E é verdade não porque nenhum outro animal fala, é verdade porque se repete. Em todas as eras humanas constatáveis, os filhotes saudáveis da espécie, tempos depois de nascidos, desenvolvem a fala, verdade inquestionável. No entanto, podemos nos perguntar por que o que se repete se repete? Como se repete? Qual a natureza da repetição? Isso talvez nos sirva de método para entender quando o que se repete merece estatuto de verdade ou de outra coisa cuja a iluminação tenha pouco alcance, ou seja limitada a um recorte de tempo. O velho Freud dizia, num texto de 1914, que “quanto maior for a resistência, de forma mais frequente o lembrar será substituído pelo atuar.” Isso nos faz pensar em até que ponto lembrar e repetir não é uma teatralização encobridora do fundamental a que se resiste.

Fazer ciência talvez seja isto: banhar-se na luz do que se repete sem ignorar o que a luz não cobre ou encobre; sem abrir mão do que não se repete, sobretudo porque não apreensível. Até porque muitas vezes o que foi relegado ao esquecimento tem mais luz do que o que, em determinado momento, se toma por verdade. Um sintoma, por exemplo, é algo que se repete, por isso localizável, por isso apreensível, por isso verdadeiro. No entanto, a verdade de um sintoma não é o sintoma, não é algo facilmente localizável ou apreensível, é de ordem desconhecida ou não tão luminoso. Como diz Lacan: “se a verdade não é o saber, é porque é o não-saber” (2001). A verdade de um sintoma é o que ele ofusca, é o que ele silencia, ainda que lateje. A verdade de um sintoma se repete na sombra de sua existência? O que se repete é o conhecimento ou o saber?

A ordem da verdade e a do saber relacionam-se com o conhecimento de modos distintos. No discurso que se quer o da verdade, o real é coberto com um manto imaginário que mantém algo colado ao sujeito de tal modo que, a depender da intensidade, esse sujeito goza pelo imaginário até colapsar. Nesse caso o conhecimento é apenas uma armadura que dá ao sujeito uma blindagem contra o real e o saber. Já no campo do saber, o real é coberto por um manto simbólico inevitavelmente furado incapaz de blindar o sujeito completamente contra o real, incapaz de produzir um efeito de totalidade. Nesse caso, o saber está sempre acossado pela dúvida o que o impede de dizer tudo. A verdade toda torna-se impossível ao campo do saber. Nesse campo, o conhecimento está constantemente sob balanço e se confunde com o saber simplesmente porque tudo não foi dito nem pode ser. O conhecimento é que se repete por uma necessidade de ser todo, de dizer tudo. O saber não se sustenta na repetição em razão de se saber não-todo. É por esse trilho que caminham, inquietos, aqueles que fazem Ciência.

Referências:
LACAN, J. O saber do psicanalista (1971-1972). Recife: Centro de Estudos Freudianos de Recife, 2001.
FREUD. S. Lembrar, repetir e perlaborar. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
GOBRY, I. Vocabulário grego da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2207.

Texto de Alan Oliveira Machado, que é escritor e professor na UEG Iporá

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