CONTOS DE FADAS COMO FERRAMENTA DE APOIO NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS SUJEITOS NA INCLUSÃO
RESUMO:
O estudo que se segue teve como temática os contos de fadas e sua importância no desenvolvimento humano e partiu da prerrogativa de que estes se originaram das narrativas orais e percorreram o mundo por meio da transmissão oral e, por conseguinte, pela escrita. Os contos de fadas trazem uma perspectiva de mundo que passa pelo mágico para se concretizar no contexto individual do sujeito. Desse modo, a pesquisa apresentada teve como objetivo analisar a gênese dos contos de fadas, assim como sua relevância no conhecimento da psique humana e na aprendizagem dos sujeitos, principalmente no contexto da inclusão. Tendo como característica metodológica a revisão bibliográfica, pautou-se nos estudos de Franz (2002), Bettelheim (2002), Mendes (2000) e Coelho (2006) que, dentre outros, delinearam o surgimento dos contos de fadas a partir do contexto dos grupos sociais e também abordaram a relevância que possuem no aspecto cognitivo-social dos sujeitos, tanto nas construções reais, quanto nas simbólicas. Diante das leituras efetuadas, foi possível observar que os contos de fadas são de suma importância para a aprendizagem do indivíduo, principalmente da criança, por causa da necessidade que essa possui em simbolizar suas experiências para torná-las reais. No contexto da inclusão isso significa tornar possível a compreensão de si enquanto parte integrante de um grupo social.
Palavras-chave: narrativas; contos de fadas; sujeitos; aprendizagem.
INTRODUÇÃO
Os contos de fadas, ao longo do tempo, têm provocado as mais variadas reflexões, considerando especificamente as imagens simbólicas que as narrativas que os compõem suscitam em seus leitores. Oriundos da narrativa oral que, antes mesmo da escrita, se difundiu pelos grupos sociais, passam a ser objeto de estudo da presente pesquisa, cuja temática se desenvolve a partir de sua gênese.
Tendo em vista a temática proposta para o estudo, a questão que o norteia é: como os contos de fadas surgiram e qual sua importância quando se trata do desenvolvimento do indivíduo? Assim a hipótese que se tem é a de que os contos de fadas de originaram nas narrativas orais e que a partir daí foram se modificando, sem, no entanto, perderem a sua característica simbólica.
O estudo que se apresenta tem como objetivos, investigar a gênese dos contos de fadas, tendo o contexto das narrativas orais como ponto de partida; caracterizar as possibilidades de desenvolvimento da psique humana a partir dos contos de fadas; analisar o uso dos contos de fadas como alternativa pedagógica às necessidades de inclusão escolar. Nesse sentido, a pesquisa se justifica pela necessidade de se estabelecer um estudo que seja profícuo na compreensão da dimensão formativa e educativa dos contos de fadas, desde o seu surgimento, no contexto da narrativa oral, quando as histórias eram usadas como meio de doutrinação até a modernidade, quando os contos passam a povoar o imaginário infantil.
De cunho bibliográfico, o estudo tem como ponto de partida as fontes de análise que são a base para o referencial teórico e que se construíram por meio de textos retirados de livros, artigos, teses, dissertações e outras bases de dados. Espera-se que a pesquisa que se apresenta possa servir como suporte para outras análises, nas quais os contos de fadas possam ser compreendidos em uma dimensão maior do que o entretenimento, mas que sejam vistos como suporte às angústias, retratos da narrativa oral e como meio de aprendizagem e desenvolvimento.
1. O SURGIMENTO DOS CONTOS DE FADAS A PARTIR DAS NARRATIVAS ORAIS
Os contos de fadas são, reconhecidamente, parte do contexto histórico de muitos grupos sociais. Isso acontece principalmente pelo fato de essas narrativas apresentarem formas de lidar com os fazeres populares e os aspectos que envolvem a sua sabedoria e as condições de existência humana. No entanto, por se tratar de narrativas que, ao longo do tempo foram se propagando por meio da oralidade, a sua origem não pode ser datada de forma precisa.
De acordo com Franz (2002) citando W. Shimidt (1946), mesmo o passar dos séculos e as transformações na sociedade não foram capazes de distorcer os temas recorrentes dos contos de fadas, tais como as relações familiares ou os conflitos entre o bem e o mal. Atos desobediência, castigos e outras maldades, encontram-se presentes no contexto humano, ainda que de outra forma.
Sobre a origem dos contos fadas, Coelho (2006) afirma que os seus primeiros registros são datados de 4000 A.C. por meio de relatos egípcios, descritos no “Livro do Mágico ”. Outros relatos que são classificados como os primórdios dos contos de fadas surgiram na Índia, na Palestina e na Grécia. Destaca-se que ao Império Romano é possível atribuir a expansão dos contos do Ocidente para o Oriente. Nesse ambiente o conto de fadas se torna terreno fértil para o cultivo dos relatos repletos de elementos sensoriais, tais como a luxúria, a ira e a cobiça, em contraponto aos aspectos ocidentais dos relatos fantásticos, nos quais predominavam a magia e os elementos a ela ligados.
No tocante à sua gênese, os primeiros registros escritos relacionados aos contos de fadas datam do século VII. De acordo com Coelho (2006), o poema épico intitulado Beowulf , de origem anglo-saxônica, foi transcrito e passou a pertencer aos anais do texto mágico, fonte dos primeiros contos de fadas. As “fadas” propriamente ditas surgiram no século IX, em uma obra de origem galesa, intitulada Mabinogion . Essa obra não é mencionada apenas por causa da origem das fadas, mas também marca a surgimento do Ciclo Arturiano , ou seja, aventuras reais que se transformaram em narrativas mágicas.
Segundo Coelho (2006) é no século XII que as conhecidas aventuras do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda são retomadas no Romance Brut de Waces . Ainda no século XII a cultura céltica passa a ser divulgada por meio das histórias fantásticas que povoam o imaginário popular a partir dos poemas narrativos que contam as aventuras do Rei Artur, desde a expansão da doutrina cristã até a morte da “magia” bretã. O pensamento cristão passa, então a se refletir nas narrativas fantásticas e o conto de fadas assume uma imagem de fantasia.
Na Idade Média, esse lastro pagão choca-se, funde-se ou deixa-se absorver pela nova visão de mundo gerada pelo espiritualismo cristão e, transformado, chega ao Renascimento. Na Era Clássica, os contos, que tinham um profundo sentido de verdade humana, foram perdendo seu verdadeiro significado e, como simples “envoltório” colorido e estranho, transformou-se nos contos maravilhosos infantis (COELHO, 2006, p. 15).
A perspectiva de Bettelheim (2004) aponta para o fato de que é no século XIV que o folclore europeu ganha espaço, com o surgimento de uma coletânea de contos intitulada “Gesta Romanorum ” que, escrita em latim, trazia os contos persas que mais tarde originariam os contos das “Mil e Uma Noites ”, obra árabe de riquíssimos relatos mágicos.
Coelho (2006) afirma que o século XVI cede espaço aos contos retratados nas obras “Noites Prazerosas ”, de Straparola e “O conto dos contos ”, de Basile. Já no início do século XVII, a forma de retratar os contos, por meio de relatos nos quais a razão se sobrepunha à imaginação, perde espaço para uma forma literária reconhecida por exaltar a existência de um mundo mágico no qual a fantasia caracterizava o imaginário. É desse período as obras de Madame D’Aulnoy; “ Contos de Fadas ”, “ Novos Contos de Fadas ” e “Ilustres Fadas ”.
Ainda segundo Coelho (2006), os primeiros contos de fadas não eram escritos para crianças e essa perspectiva se transforma com a ascensão dos textos de Charles Perrault na França do século XVII e com os Irmãos Grimm, na Alemanha do século XVIII. As narrativas anteriores a esses autores, geralmente traziam finais sangrentos e dotados de ensinamentos de moralidade voltados para a vivência do indivíduo na sociedade. Os elementos mágicos presentes justificavam a necessidade de doutrinação, para que os sujeitos não saíssem dos caminhos determinados pela vivência em sociedade.
Os elementos mágicos que normalmente povoavam o imaginário infantil passaram a ser incorporados aos contos de fadas e os traços perderam seus aspectos sangrentos para assumir a catarse do bem sobrepujando o mal. O fantástico no conto de fadas, difundido por Perrault e pelos Irmãos Grimm, ganha força no século XIX, com a popularização dos contos do dinamarquês Hans Christian Andersen e no século XX a magia toma conta da América com a ascensão de Walt Disney e seu mundo encantado, povoado por fadas madrinhas, princesas, príncipes e bruxas malvadas.
No entanto, de acordo com Cashdan (2003), somente no século XIX é que, de fato, os contos de fadas passam a ser considerados como literatura infantil. Esse crédito é concedido aos vendedores ambulantes dos países de língua inglesa que divulgavam nos pequenos povoados a literatura em pequenos volumes. Tais volumes eram consumidos em grande escala nos vilarejos por causa do preço e por conterem as histórias passadas de geração a geração, com um novo olhar, cheio de pinceladas mágicas e sem as partes mais chocantes, o que os tornou extremamente populares.
Conforme mencionado, Charles Perrault e os Irmãos Grimm foram os percussores dos contos de fadas voltados para a infância. Vale lembrar que Perrault nasceu na França em 1623 e faleceu em 1703. É de sua autoria os reconhecidos “Contos da Mamãe Gansa”, que em seu tomo original trazia a figura de uma velha a fiar, como forma de memória às fiandeiras, responsáveis por contar e recontar velhos causos e histórias. Inicialmente, Perrault não escrevia para crianças, mas o seu conto “A pele de asno” fez com que o autor percebesse a necessidade de uma escrita voltada a elas, como forma de orientação moral. Segundo Costa e Baganha (2002), seus principais contos foram “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “ O Barba Azul”, “ O Gato de Botas”, “As Fadas”, “ A Gata Borralheira”, “Henrique de Topete” e o “ Pequeno Polegar”.
Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, foram pesquisadores alemães, especialistas em recolher histórias consagradas na tradição oral alemã e que, como folcloristas percorreram seu país durante 13 anos em busca dos elementos que caracterizavam o que mais se destacava na memória oral perpassada de geração em geração.
Segundo Pavoni (2009), o primeiro volume contendo as principais histórias pesquisadas pelos Irmãos Grimm foi publicado em 1812 e nele havia o registro dos contos recolhidos na cidade alemã de Hessen e nos distritos de Meno e Kinzing, no condado de Hanau, onde nasceram. Em 1814 concluíram o segundo volume, composto pelas lendas contadas por uma camponesa, moradora da aldeia de Niedezwehn, próxima à cidade de Kassel, na Alemanha.
Pavoni (2009) afirma também que, embora guardassem o mesmo interesse pelo folclore de seu país de origem, os Irmãos Grimm eram muito diferentes entre si. De acordo com o autor, Jacob era mais racional e intelectualizado enquanto que Wilhelm trazia dentro de si o entusiasmo e a inspiração pela poesia. No entanto, ainda que com personalidades tão díspares, os Irmãos Grimm foram responsáveis pela edição de cerca de 210 histórias que até hoje fazem parte do imaginário popular, dentre elas “A Bela e a Fera” e “ João e Maria”.
Muitas histórias infantis originavam-se nas experiências de seus autores e estas retratavam o sofrimento, os códigos morais da sociedade e o espaço vivenciado pelas crianças. Nesse contexto é que se insere Hans Christian Andersen, filho de um sapateiro com uma mãe desconhecedora da escrita, mas dotada de forte superstição, o que o influenciou imensamente, principalmente no tocante à tradição oral do local em que habitavam.
Segundo Coelho (2006), os primeiros contos de Andersen foram publicados em 1835 em um volume intitulado “Histórias Contadas às Crianças”. No entanto sua produção se estendeu e até o ano de 1872, havia produzido 168 contos que, por sua vez tinham como pano de fundo sua história de vida e os ensinamentos oriundos desta. “Destacam-se as obras “A Roupa Nova do Imperador”, “ O patinho feio”, “Os Sapatinhos Vermelhos”, “ A Pequena Sereia” e a “Pequena Vendedora de Fósforos”, este último, transformado em animação e vencedor de diversos prêmios.
Por causa de sua forte influência no ideário, tanto infantil quanto popular, os contos de fadas chamaram a atenção de estudiosos, não apenas de linguistas e folcloristas, mas também de estruturalistas e especialistas em oralidade. De acordo com Pavoni (2009), os primeiros estudos científicos tendo como temática os contos de fadas foram realizados por Vladimir Propp, pesquisador russo especializado em narrativas populares. Seu olhar se voltou para os contos de fadas em 1920, a partir da proposição de analisar estruturalmente as narrativas mais populares da época. Foram escolhidos cem contos e ao final de seu estudo, Propp pode concluir que as narrativas possuíam uma sequência de ações praticamente iguais e que estas também guardavam as mesmas funções dentro do contexto narrado. Esse fato fez com que se concluísse que, ainda que apresentassem temas diversificados ou múltiplas versões, a origem destas estavam ligadas a um núcleo comum.
Acerca dessa questão, Coelho (2006) ressalta que Propp, a partir da análise estrutural dos contos de fadas foi capaz de traçar um esquema básico para os contos de fadas que trazia o início, a ruptura, o confronto, a superação de obstáculos e perigos, culminando com a restauração e o desfecho. Nesse sentido, o início poderia ser caracterizado com o aparecimento do herói ou da heroína assim como o surgimento do problema que vai tirar a estabilidade da narrativa e, portanto, a paz do começo. O momento de ruptura se dá quando o herói parte em busca do desconhecido, do que está além de sua vivência comum e para que isso possa ocorrer ele se desliga da vida concreta e abandona sua proteção.
De acordo com Coelho (2006) o confronto e a superação dos obstáculos se dão a partir da busca do herói por soluções que, muitas vezes se dão de forma fantasiosa. Diante da superação, a restauração é caracterizada como o surgimento do novo e de suas potencialidades. Após todos os obstáculos serem vencidos e a paz restaurada, tem-se o momento do desfecho, no qual as lições são explicitadas e a moral, deixada para que os leitores a absorvam.
Os obstáculos são características constantes dos contos de fadas e são considerados por diversos autores, dentre eles Coelho (2006) como uma forma de seguir um ritual de iniciação, ou seja, por meio da superação de dificuldades, o indivíduo passa a se inserir no seu meio social. Ao vencê-los o herói pode provar que possui maturidade suficiente para prosseguir a vida de forma independente e no caso dos príncipes, vencerem o mal representa a prontidão para assumir projetos maiores, como o de herdar o trono ou o reinado. A superação do herói advém da existência de um problema a ser superado, e esse faz referências à realidade vivenciada na tradição oral. Os elementos mágicos passam a existir como forma de justificar a existência de um herói e alimentar a fantasia, o ponto de partida do conto de fadas.
É interessante se observar nos contos de fadas que não há um final desejável para a narrativa enquanto o conflito persistir, ou seja, enquanto uma bruxa ou uma madrasta má continuarem sua trajetória de maldades e a mocinha ainda não tiver encontrado o seu pretenso príncipe. Os contos de fadas, de acordo com Mendes (2000), representam os processos ritualísticos que comandaram os grupos sociais ao longo dos tempos. A sua atemporalidade se dá por causa da “iniciação”, processos pelos quais os indivíduos mais velhos introduzem os mais jovens na arte da narrativa oral.
Essa perspectiva é confirmada por Coelho (2006) ao afirmar que os estudos de Propp, voltados para a análise das estruturas básicas das narrativas, provam que há uma sequencialidade de ações ritualísticas nos quais é possível se perceber o papel dos mais velhos enquanto iniciadores. Essas narrativas, geralmente mostravam aos iniciados o modo como determinada raça surgiu ou como algumas ações se tornaram costumes. Tais ações normalmente aparecem ligadas a um ancestral, o primeiro de cada raça ou de cada grupo social.
2. OS CONTOS DE FADAS COMO FERRAMENTAS DE APRENDIZAGEM HUMANA
Considerando que os contos de fadas surgiram das narrativas orais e persistiram ao longo dos tempos como formas simbólicas de compreensão do mundo, a pesquisa proposta volta-se para o contexto educativo desses. Parte-se, então, do pressuposto de que, inicialmente, os contos de fadas sejam destinados às crianças, isso porque, ainda que vivam no mesmo contexto dos adultos, essas vêem, sentem e pensam o mundo de uma forma totalmente diferente.
De acordo com Costa e Baganha (2002), a criança não reconhece o mundo e os elementos que o compõe como algo distante dela mesma. Ao observar essa exterioridade, a criança experimenta a sensação de limites e poderes próprios e os confronta com a sua realidade interior. Essa ideia é reforçada por Bettelheim (1990) quando este afirma que ao longo dos tempos, as projeções intelectuais da criança foram organizadas por meio das histórias, dependendo dos mitos, religiões, contos de fadas que alimentaram a imaginação e estimularam a fantasia. Os conceitos sobre a natureza, o conhecimento de mundo e da sociedade foram construídos a partir do conhecimento dos mitos, lendas e das fábulas que ouviram.
É possível observar que, embora sejam dotados de elementos fantásticos, os contos de fadas são realísticos por natureza e por isso atendem às necessidades individuais de quem os ouve. Segundo Bettelheim (1990), ainda que os contos de fadas apresentem eventos do cotidiano, de uma forma bem realista, estes não fazem referência direta ao mundo exterior e seu conteúdo quase sempre se distancia do contexto real dos ouvintes. Dieckmann (1992, p.49) defende que os contos de fadas sejam mais do que simples histórias belas com finais felizes, mas servem de instrumento na configuração do “Eu” humano. “[…] As figuras e feições, como também a ação do conto, são vividas não mais como acontecimento real do mundo, exterior, mas como personificação de formações e evoluções interiores da mente”.
Por meio dos aspectos simbólicos presentes nos contos de fadas as crianças criam mecanismos que permitem que as exigências do contexto em que vivem e as necessidades de seu grupo social possam ser compreendidas. Dieckmann (1992) argumenta que por meio dos contos de fadas a criança se protege e combate os ataques ao seu próprio eu, além de compreenderem como o mundo se organiza e aprenderem a agir como adultos, no sentido de superar e resistir às dificuldades. Para Bettelheim (1990), os contos de fadas permitem que a criança descubra a sua identidade e sua forma de comunicação, sugerindo ensaios necessários para o desenvolvimento de seu caráter. “[…] Estas estórias prometem à criança que, se ela ousar se “engajar” nesta busca atemorizante, os poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá (p.32).” Os contos de fadas também exercem o papel de juiz, de conselheiros, alertando em suas entrelinhas que a busca pela identidade verdadeira é essencial e que se não o fizer sofrerá com as conseqüências. “Como obras de arte, os contos de fadas têm muitos aspectos dignos de serem explorados em acréscimo ao significado psicológico e impacto a que o livro está destinado” (BETTELHEIM, 1990, p.21).
Observa-se que os contos de fadas são tratados como narrativas orais ancestrais e por causa desse aspecto trazem em si a perspectiva de resgate da herança cultural de qualquer grupo social. Tal herança é comunicada às crianças por meio dos enredos contidos nessas histórias mágicas.
Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa (BETTELHEIM,1990, p.14).
Ainda segundo Bettelheim (1990), é nos contos de fadas que as crianças poderão se defrontar com as características consideradas essenciais ao ser humano. Os dilemas apresentados nas histórias devem ter uma solução imediata e decisiva e isso faz com a criança se torne capaz de compreender sua essência. Geralmente o enredo dos contos é simples, o espaço e o tempo se constroem de forma clara e os personagens são de fácil compreensão, embora sejam ambivalentes, assim como o ser humano é na realidade.
A mesma polarização verificada nos contos de fadas também é perceptível nas mentes das crianças, ou seja, um personagem é mau e outro é bom, sem que sejam dadas maiores explicações ou que se busquem justificativas para tal comportamento. O gênero, nos contos de fadas, não é a ideia predominante, pois, não importa se o herói é um homem ou uma mulher, isso não diminui o significado psicológico dos contos de fadas para as crianças.
A criança se identifica com a forma que o herói encontra para lidar com os problemas e enfrentar o que considera mau. Nos contos de fadas os problemas aparecem de forma comedida, ou seja, um de cada vez e o herói tem que lidar com eles da mesma forma. Assim, primeiro o príncipe liberta a princesa e depois, segue em busca da bruxa ou do dragão. Essa forma simples de lidar com um conflito de cada vez facilita o desenvolvimento da personalidade da criança. Quando se trata de crianças com qualquer tipo de deficiência essa identificação se torna mais ampla, uma vez que o herói nem sempre pode ser considerado “perfeito” embora esse fato não o impeça de ser bom.
O papel fundamental dos contos de fadas é proporcionar mecanismos para que a criança possa lidar com o que seja diferente de seu cotidiano ou que faça parte desse continuamente. Nesse sentido, a criança aprende a lidar com as polaridades, com as diferentes vertentes que compõem a subjetividade humana. De acordo com Bettelheim (1990), nos contos de fadas um personagem é bom e o outro mau, um é esperto e o outro tolo, um lindo, outro feio e essa união de características diversificadas faz com que a criança torne-se capaz de compreender que as pessoas são diferentes e que podem escolher quem gostariam de ser.
Não é o fato do malfeitor ser punido no final da estória que torna nossa imersão nos contos de fadas uma experiência em educação moral, embora isto também se dê. Nos contos de fadas, como na vida, a punição ou o temor dela é apenas um fator limitado de intimidação do crime. A convicção de que o crime não compensa é um meio de intimidação muito mais efetivo, e esta é a razão pela qual nas estórias de fadas a pessoa má sempre perde. Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas de.o herói ser mais atraente para a criança que se identifica com ele em todas as suas lutas. Devido a esta identificação a criança imagina que sofre com o herói suas provas e tribulações e triunfa com ele quando a virtude sai vitoriosa. A criança faz tais identificações por conta própria e as lutas interiores e exteriores do herói imprimem moralidade sobre ela (BETTELHEIM, 1990, p. 15).
Embora os contos de fadas sejam indicados para as crianças em todas as suas fases de desenvolvimento, não há como estabelecer um limite para a idade em que serão apresentadas ao mundo mágico contido nessas histórias. Enquanto bebês, os contos de fadas servem para que possam se habituar à voz de quem conta as histórias, mais tarde, esses deverão ser escolhidos de acordo com o nível de desenvolvimento que a criança apresentar. Geralmente, quando perguntados, os próprios ouvintes determinam o que gostariam de ouvir e essa escolha se dá conforme a história age em seus inconscientes.
Naturalmente, um pai começará a contar ou ler para seu filho uma estória que ele próprio gostava quando criança, ou ainda gosta. Se a criança não se liga à estória, isto significa que os motivos ou temas aí apresentados falharam em despertar uma resposta significativa neste momento da sua vida (BETTELHEIM, 1990, p.26).
Quando a criança não demonstra interesse por determinada história é necessário que se faça experiências com as outras. A insistência em fazer com que goste do que está sendo contado apenas porque tal história é mais fácil de ser lida, faz com que os contos de fadas percam a sua essência enquanto provocadores de aprendizagem.
De acordo com os autores pesquisados e dentre estes, Bettelheim (1990), o que deve ser feito quando a história não agrade a criança é contar outra e mais outra até que uma seja aquela que vai ser repetida por meio do “conte outra vez”. Geralmente a história é pedida novamente até que os problemas sejam solucionados e a criança perca o prazer de ouvi-la.
O conto de fadas não pode ser visto como uma mera distração e nem tampouco deve ser tratado apenas como ferramenta pedagógica. Em casa, ao se criar o hábito da narrativa, as pessoas envolvidas no processo devem achá-lo tão divertido quanto a criança.
É exatamente tão importante para o bem-estar da criança sentir que seus pais compartilham suas emoções, divertindo-se com o mesmo conto de fadas, quanto seu sentimento de que seus pensamentos interiores não são conhecidos por eles até que ela decida revelá-los. Se o pai indica que já os conhece, a criança fica impedida de fazer o presente mais precioso a seu pai, o de compartilhar com ele o que até então era secreto e privado para ela (BETTELHEIM, 1990, p. 26 – 27).
Em muitos casos, os contos de fadas perdem o encantamento para as crianças quando os seus narradores tentam explicar o contexto ou o enredo da história. A criança é capaz de criar os seus mecanismos próprios de entendimento e quando sentir a necessidade de ter uma dúvida sanada ela mesma buscará respostas.
A criança aprende com os contos de fadas quando ela mesma consegue chegar às possíveis soluções para os conflitos antes mesmo do herói. É possível perceber que em muitas histórias a criança antecipa o final e até mesmo o recria. O ato de recontar a história ou apresentá-la de outra forma, mostra que a mesma já foi ruminada, pensada, repetida e assimilada internamente e que a repetição das situações de sofrimento proporcionou à criança os instrumentos necessários para que se sinta segura.
De acordo com Costa e Baganha (2002) há na criança um vazio afetivo que deve ser preenchido e quando isso não ocorre, passa a sentir medo. A desilusão ocasionada pela realidade faz com que ela perceba que ao seu redor, nem todos estão dispostos a se sensibilizarem com seus desejos. Nesse sentido, os contos de fadas podem preencher os espaços que surgem, tais como o medo do abandono, a desconfiança, o desejo de se afirmar e o desafio que é ser criança.
Estes rostos para os seus “desejos inconfessáveis” só nos Contos de Fadas podem ser encontrados e “decifrados” pela criança. Os contos de fadas oferecem personagens sobre as quais a criança pode exteriorizar aquilo que se passa com ela e de uma forma controlável. Mostram à criança como pode materializar os seus desejos destrutivos numa dada personagem, tirar de outra as satisfações que deseja, identificar-se com uma terceira, ligar-se a uma quarta da qual faz seu ideal e assim sucessivamente, segundo as necessidades de momento. Além disso, desacreditando as limitações de tempo e espaço, permite uma representação visível, concreta e simultânea de todas as facetas que constituem o universo da criança (COSTA; BAGANHA, 2002, p.39).
As realizações dos heróis dos contos de fadas fazem com que a criança sinta-se segura para deixar de lado, tanto no consciente quanto no inconsciente, os seus desejos por dependência infantil e se tornar mais independente para enfrentar os “dragões” e as “bruxas” do mundo que a rodeia. Os contos de fadas, conforme já mencionado, são atemporais e no contexto atual não perderam o seu significado, ainda que o avanço tecnológico talvez mostre o contrário. A criança, na segurança de seu lar, tem-se se aproximado ainda mais do heroi que, sozinho, consegue superar suas dificuldades, pois são confiantes de sua capacidade e, ainda que precisem do auxílio de outros indivíduos, sabem que serão atendidos.
No contexto educativo, o conto de fadas colabora para a formação pessoal de cada indivíduo e como instrumento pedagógico, tem a proposição de aliviar as pressões pela aprendizagem e construir os conceitos simbólicos acerca dessa. No entanto, há um conflito em se usar os contos de fadas como ferramenta pedagógica, pois o educador teme pelo seu posto de detentor do conhecimento e acredita que a fantasia não deve ser vivenciada livremente. “Transformados em tarefas escolares, os contos de fadas perdem sua função lúdica e estética e impedem que as emoções sejam vivenciadas, Ao mesmo tempo, acredita-se que os impulsos mais primitivos possam ser aprisionados (BETELHEIM, 1980 p.13)”
Saiani (2003) defende que os contos de fadas só devem ser usados como ferramenta pedagógica se o professor tiver a consciência da relação que foi estabelecida com seus alunos. Desse modo, torna-se necessário que o educador goste dos contos de fadas e saiba direcionar os conteúdos curriculares para que estes possam ser aproveitados, mas também deve ter em mente que a narrativa fantástica exige um ambiente propício que nem sempre esteja condicionado ao contexto da sala de aula.
Os contos de fadas quando usados apenas como leitura cotidiana perdem o seu encanto, pois necessitam de um envolvimento por parte de professores e alunos. O ato de contar histórias requer o pensamento de que, o produto desta não será visto imediatamente, apenas por meio de uma produção ou pelo registro escrito. As nuances comportamentais serão vistas a partir da análise de cada indivíduo, observando como estes construíram seus próprios significados.
Nos contos de fadas modernos, tais como Shrek e as releituras de Branca de Neve, vistas nos filmes “Branca de Neve e o Caçador” e “Espelho, Espelho Meu”, além da releitura de Chapeuzinho Vermelho em “A garota da Capa Vermelha”, são mostradas as tendências que as narrativas orais têm de se adaptar aos contextos nos quais os indivíduos encontram-se inseridos. As releituras mostram que os ideais de perfeição cedem lugar às atitudes de caráter e bondade. Se antes, bastava que o príncipe fosse lindo, nas obras atualizadas ele não precisa ser o mais belo para conquistar a princesa, e sim, ser o mais amigável, confiável e cheio de atitudes que denotam seu caráter.
Existe nessas novas abordagens a tentativa clara de se mostrar que a humanidade evoluiu e junto a esse fenômeno, o simbólico e o imaginário também sofreram transformações. Nesse sentido, nota-se uma preocupação em mostrar que o “feliz para sempre” independe de características que antes eram ressaltadas, dentre essas a beleza. Desse modo, o conto de fadas modernizado assume o caráter pedagógico de fazer com os sujeitos lidem com as diferenças, as compreendam e aprendam a partir delas. Quando o professor leva para a sala de aula as aventuras de Shrek, Fiona e o Burro, personagens que não se adaptam aos estereótipos que se estabelecem, está dando espaço para as crianças compreenderem que as diferenças não devem ser obstáculos à felicidade.
É interessante ressaltar que antes, muitas crianças se identificavam com o Patinho feio e desejavam se tornar cisnes algum dia. A partir das mudanças ocasionadas em seu meio, os novos olhares lançados aos estereótipos e às narrativas orais, as crianças passaram a desejar ser Shrek e Fionas, ou seja, personagens destemidos, amigáveis e por que não? Heróis que simplesmente não seguem os padrões impostos e que por isso, possuem maiores chances de serem felizes. O professor, ao abordar essa possibilidade faz com que a criança se veja na mesma condição dos personagens e busque outras alternativas na sua adaptação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se com esta pesquisa desvelar, por meio de referenciais bibliográficos, a origem dos contos de fadas, bem como sua relevância no desenvolvimento humano. De modo geral, pode-se dizer que os objetivos foram alcançados e a hipótese confirmada a partir da consideração de que os contos de fadas originaram-se das narrativas orais e perfizeram um longo caminho até os moldes atuais, mas que não sofreram grandes modificações além das releituras que hoje são observadas.
Como primeiro passo na compreensão da temática proposta, foi feita uma explicação acerca da origem dos contos de fadas e como estes se desenvolveram, desde sua difusão por meio da oralidade, até a escrita. Assim, foi possível perceber que as histórias fantásticas e mitológicas serviram de pano de fundo para a construção das narrativas mágicas que caracterizam os contos de fadas. Vistos inicialmente como um meio de doutrinação e como forma de aprendizagem com um aspecto simbólico, os contos de fadas tomaram conta do imaginário popular pelo uso de elementos que fazem parte do ideário humano e que servem de base para a construção de seus mitos.
A partir da análise da narrativa oral que fundamenta os contos de fadas, observou-se também que estes agem na psique humana e assumem voz ativa na construção do consciente e do inconsciente, tanto individual, quanto coletivo. Foi possível perceber que esta ação se dá de muitas formas, que vão desde a construção simbólica que os contos de fadas suscitam, até a representação de angústias e medos a serem superados. Assim, a pesquisa trouxe à tona a importância dos contos na formação da criança, que os vê como parceiros no crescimento e na aprendizagem.
O trabalho foi crescendo com a pesquisa e tornou-se ainda mais relevante a partir da constatação de que o valor que se dá aos contos de fadas é verdadeiro, que estes traduzem bem mais do que simples histórias e embates entre o bem e o mal. A criança vê nessas narrativas que os sofrimentos, as perdas, os conflitos existem, mas que podem ser superados e busca nos contos de fadas, as primeiras respostas para seus questionamentos.
Os contos de fadas não se resumem apenas na luta da bruxa para ser a mais bela de todas ou o sofrimento da princesa aprisionada em uma torre. Eles possuem o poder de se tornarem transcendentais e imortais, isso porque a narrativa oral não morre, mas se perpetua por meio da escrita.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete. Contos de Perrault, imagens de mulheres. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010132621998000200006 Acesso em: julho de 2014.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 2002.
CASHADAN, Sheldon. Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 2006.
COSTA, Isabel Alves. BAGANHA, Filipa. Lutar Para Dar Um Sentido À Vida: Os contos de fadas na educação de infância. Portugal, Edições Asa, 2002.
DIECKMANN, Hans. Contos de fadas vividos. São Paulo: Paulinas, 1992.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FRANZ, Marie-Louise Von. A interpretação dos contos de fada: Uma introdução à psicologia dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiamé, 2002.
GILLIG, Jean-Marie. O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
PAVONI, Amarílis. Os contos e os mitos no ensino: uma abordagem junguiana. São Paulo: EPU, 1989.
VOLOBUEF, Karin. Um estudo do conto de fadas. Revista de Letras. São Paulo: Universidade Estadual Paulista/ UNESP. V. 33, 1993.