
“Tudo que era sólido se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado”… Karl Marx e Friedrich Engels
O mundo anda muito estranho. As guerras sempre estúpidas pululam, a sanha totalitária se espalha e vira perigosamente gosto comum de ignorantes empoderados, a idiotice cavalgando no lobo frontal emburrecido pelas redes sociais corta o vasto pasto da existência… Tudo isso abrindo um horizonte sombrio, como se estivéssemos regredindo. Como se o acúmulo de saber e de experiência que as ciências humanas e naturais produziram ao longo dos séculos tivesse perdido a solidez, pulverizando-se no ar, só para lembrar uma profética e longínqua frase do velho Marx. Todo o avanço humano e tecnológico está nos levando, parece, a um marco zero. A um ponto de congelamento da experiência humana que a torna inócua, ascética, farinha de fragmentos dada a montagens e interpretações delirantes, desvinculadas do reconhecimento, liga necessária à contenção das pulsões destrutivas. Até parece que estamos voltando ao “Planeta dos macacos”.
“Planeta dos macacos” é um filme distópico, de ficção científica, lançado em 1968. Conta a história de uma nave humana que viajou na velocidade da luz e retornou à terra tempos depois. Embora para os viajantes se tivessem passado alguns anos, na terra se passaram muitos séculos. O planeta havia sido destruído por uma guerra nuclear e os sobreviventes dominantes, humanos e macacos, tiveram sua história invertida. Os macacos ficaram mais inteligentes, embora fosse uma inteligência medieval, e os humanos viraram tão somente bichos de estimação e de uso dos macacos em pesquisas de laboratório, circos e museus. O sucesso do filme rendeu uma série de sequências que vão de 1970 a 1974. Confesso que assisti ao primeiro filme em 1980, ainda criança, e fui tomado de angústia por inevitavelmente me ver no lugar daqueles humanos oprimidos objetificados por primatas cruéis.
Em 2001, produziram uma nova versão do primeiro filme e, anos depois, em 2011, inciaram uma trilogia com o filme “Planeta dos macacos: a origem”. Era nessa trilogia atual que queria chegar para dizer que os filmes soam como uma metáfora dos anos que estamos vivendo. A trilogia mostra que a ciência, com alta sofisticação, trancada em laboratórios, produziu a regressão da espécie na medida em que, manipulando macacos em laboratório, criou símios mais inteligentes e também um vírus que tornou os humanos mais estúpidos, incapazes de falar e com um pensamento rudimentar. Em razão disso, os macacos, agora mais inteligentes que os humanos, dominam o mundo e oprimem a espécie que os criou como experimento de laboratório.
Ora, de uns tempos para cá, nós também viramos cobaias de laboratório, conectados que estamos, inexoravelmente, ao mundo virtual, administrado por macacos medievais. Os efeitos desse mundo que nos enclausura pelos celulares, tablets e pcs estão aí nas estatísticas de transtornos mentais e na destruição galopante de democracias. O que as inteligências artificiais aplicadas aos smartphones têm produzido senão um entorpecimento doentio que corrói a inteligência natural e o senso de humanidade, reconfigurando o cérebro das pessoas de modo a torná-las simples bestas cegas trotando para o abismo?! O que vemos no ponto de saturação cientifica e na pulverização do saber a que chegamos senão o emburrecimento da humanidade, a incapacidade de se ver no outro, de se proteger na natureza e na cultura?! O smartphone nas mãos de um humano distraido o deseduca, o imbeciliza e não o protege dos seus desejos mais obscuros, pelo contrário, encoraja a besta destrutiva em que o usuário aos poucos é transformado.
O smartphone atualiza, de certo modo, o livro VII de A república, de Platão, no qual o filósofo cria a alegoria da caverna para retratar a diferença entre aqueles que enxergam a realidade e os que, ignorantes, se guiam pelo reflexo, pelas sombras da realidade. No início do livro VII, o filósofo grego já nos adverte de que se trata de uma reflexão sobre o estado da alma “com respeito à educação e à falta desta”. Assim como o espírito é tomado pelas trevas do engano que o deseduca e o faz definhar, no interior da caverna platônica, na caverna virtual padecemos violentamente das piores trevas, tomados por uma fome insaciável, com nossos olhos inchados e nosso peito inflado de um vazio abissal.
Dentro da caverna que um smartphone cria, quando em mãos incautas, o espaço é exíguo e o tempo é infinito, mas não como multiplicidade, novidade que enriquece, não como o tempo real, aquele produzido pela relação com o espaço, onde se constroem as experiências que regram a memória e estendem o tempo como relação com o vivido. O tempo na caverna do smartphone é infinito como looping; é uma prisão feita de fragmentos sem contexto real, repetidos à exaustão. É um tempo falso que não gera experiência, portanto não produz memória que humaniza. Quando se larga o smartphone por alguns minutos, o atordoamento mental torna o mundo irreconhecível, irritante e angustiante, restando ao cérebro capturado pela máquina tratá-lo com indiferença, com agressão ou simplesmente girar pelo tecido social como um peão enlouquecido. Como na caverna de Platão, a luz do mundo real é um punhal que fere os olhos e a bolha imaginária daqueles que já são só escravos e prisioneiros dos algoritmos que constroem e decoram as cavernas virtuais onde apodrecem, mendigos de humanidade, enquanto alimentam primatas como Trump, Netanyahu, Musk, Zuckerberg, Bezos, Putin e mais e mais e mais… Todos gorilas medievais!
Ao que tudo indica, quem não conseguir sair da caverna virtual, quem não conseguir enfrentar a luz da realidade, não vencerá esses gorilas. Há braços!
Referências
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.
PLATÃO. A república: Livro VII. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Alan Oliveira Machado é escritor e professor na UEG Iporá