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“E esse tal de Ezechiello?”: sobre história do catolicismo na região

Frei Henrique Ciocci, OP, o primeiro Pároco residente em Iporá, Goiás

Dedico este breve texto aos colegas, professores e professoras, do Fórum de Professores de História do Oeste Goiano, e aos discentes do Curso de História da UEG – Unidade Iporá.

Poucos devem ter ouvido falar em um tal de Ezechiello no sertão goiano. Mas, em Iporá, entre 1951 e 1959, esse italiano era conhecido por outro nome: Frei Henrique Maria Ciocci, Enrico ou Frei Henriquinho, o primeiro padre a residir na cidade de Iporá, Goiás. O religioso foi figura central na organização da Igreja Católica na região e da Escola Dom Bosco ao longo da década de 1950.

Ezechiello era seu nome de batismo. Nascido em 28 de setembro de 1918, em Pavullo nel Frignano, na região da Emília-Romanha, Itália, Ezechiello adotou o nome religioso possivelmente ainda lá na Itália. Era filho de Teodoro Marsilio Ciocci, lavrador, e Ida Maria Silva Cassini, dona de casa. Estudou Teologia e Filosofia em Bolonha e depois em São João del-Rei (MG). O frei fez seus votos religiosos aos 20 anos, em 1938, e foi ordenado sacerdote em 1945, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, cujos lances finais ele deve ter acompanhado por viver não muito longe do front italiano.

Um ano depois da ordenação, o Frei embarcou para o Brasil a bordo do vapor Almirante Jaceguay. Com ele, também veio a imagem de Nossa Senhora do Rosário, que, anos mais tarde, em 1954, foi transportada de Goiás para Iporá. É aquela imagem da santa que fica do lado esquerdo da matriz, a partir da entrada da Igreja Matriz. Um adendo: o Almirante Jaceguay foi vapor que levou Júlio Prestes aos Estados Unidos em 1930, ano em que Getúlio Vargas deu golpe de estado no Brasil e impediu o paulista de assumir a presidência da República.


As fontes sobre seus primeiros anos no Brasil são escassas, mas há registros de batismos celebrados por ele em 1949, na cidade de Palmital (SP). Sua chegada a Iporá, à bordo de avião da Nacional, em 1951, foi resultado de um acordo entre o arcebispo de Goiás, Dom Emanuel Gomes de Oliveira, e o bispo da extinta Prelazia de Sant’Ana do Bananal, Dom Cândido Penso. A Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Iporá pertenceu à Prelazia entre 1951 e 1956.

A Igreja de Iporá, pequena cidade do Oeste Goiano, foi a primeira paróquia assumida por Frei Henrique, uma exceção, já que dominicanos geralmente não exercem trabalhos paroquiais. Segundo fontes orais, essa decisão partiu do próprio frei, com apoio do bispo. Durante os oito anos em que permaneceu na cidade, ele ajudou a estruturar a paróquia e a conceber o atual templo, que substituiu o antigo, situado onde hoje é a rodoviária de Iporá. Também deu continuidade ao trabalho iniciado pelo belga salesiano, vindo do Mato Grosso, Dom Jozef Evarist Bessemans, na Escola Dom Bosco, fundada em 1947.

Assim como seus antecessores salesianos, Frei Henrique foi um dos personagens marcantes do processo de sociogênese de Iporá e região. Nos termos de Norbert Elias, o religioso teve papel relevante na estruturação de uma instituição capaz de incutir comportamentos e visões de mundo que disciplinaram os sujeitos católicos. Nesses termos, ele foi um agente religioso do processo civilizatório orientado pelo catolicismo na região.

Frei Henrique ficou responsável por um território paroquial imenso, herdado do antigo povoamento de Rio Claro, com mais ou menos 200 km². O domínio incluía, naquela época, as atuais cidades goianas de Iporá, Israelândia, Amorinópolis, Diorama, Palestina de Goiás, Cachoeira de Goiás, Moiporá, Ivolândia, Jaupaci, Fazenda Nova, Montes Claros e Registro do Araguaia, além de distritos e povoados menores. O padre visitava a cavalo – ou em um pequeno avião – essa vasta região ao longo do ano, em missões volantes ou “desobrigas”.

Antes dele, haviam passado pela zona paroquial padres salesianos vindos da Prelazia de Registro do Araguaia, no Mato Grosso, sendo o padre Luigi Brívio (1876-1953) muito provavelmente o primeiro a atuar na região na década 1930, como registrado pelo próprio Frei Henrique no Livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Claro e em fontes de batismo da Paróquia Nossa Senhora do Rosário. A certa solidão sacerdotal na vasta região foi amenizada com a vinda temporária dos dominicanos Frei Ferrari e Frei Miotto, em 1953, e Frei Blasarim, em 1956.

Além de pastor, Frei Henrique demonstrava interesse em registrar fatos locais sob a ótica do projeto civilizatório da Igreja, o que permite considerá-lo um dos primeiros cronistas da história de Iporá. Seus manuscritos sobre a região paroquial informam não apenas sobre o trabalho religioso, mas também apresentam impressões sobre a realidade local, as atividades na antiga sede paroquial e a Escola Dom Bosco. Foi através dele que encontrei pela primeira vez a informação de que Tamanduá foi o primeiro nome do povoamento que viria a se chamar Itajubá e, depois, Iporá.

Essa preocupação de Frei Henrique com os registros também foi notada pela pesquisadora Patrícia Marcelina Loures, em sua dissertação Inventário de benzeções, rezas e novenas, folias e congada: educação nas manifestações culturais. A autora aponta o esforço do frei em dar conta da história da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Nova Veneza, onde o religioso trabalhou na década de 1970.
A atuação de Frei Henrique em Iporá foi marcada por alguns momentos de tensão. O religioso parecia um tanto indisposto à pluralidade religiosa, em parte por conta da orientação que predominava antes dos ventos modernos do Concílio Vaticano II (1962–1965) e pela convicção de que a Igreja Católica deveria ser o principal centro civilizatório definidor da vida espiritual, educacional e social. Além disso, as dificuldades enfrentadas por Ciocci estavam ligadas ao seu envolvimento com a política local.

O sacerdote católico viveu atritos com grupos religiosos, especialmente espíritas e protestantes. Um dos episódios mais emblemáticos foi a retirada da imagem de Nossa Senhora da Guia, em 1952 ou 1953, do povoado de Crispinópolis, onde havia praticantes do Espiritismo. O padre afirma, em documento de próprio pulso, que abandonou aquela pequena comunidade e que a imagem religiosa foi levada para Campo Limpo (atual Amorinópolis) por populares. A imagem foi consagrada por ele em 1951. Sua retirada significou, na prática, o “sepultamento religioso” da comunidade aparentemente pequena, que ao que tudo indica foi o primeiro povoamento daquela região e o primeiro a registrar a presença de espíritas entre nessa parte do estado de Goiás.


Outro conflito, mais grave, envolveu protestantes e o ex-prefeito (e candidato ao Executivo em 1956) Israel de Amorim. O episódio resultou em uma denúncia de ameaça, noticiada na edição n.º 28 do Jornal de Notícias, em 31 de maio de 1956. O frei, que poderia ser impaciente, mas não era tolo, foi até Goiânia, onde foi recebido pelo governador José Ludovico de Almeida, que lhe prometeu garantir sua segurança. Frei Henrique era apoiador da candidatura do católico, professor e udenista Manuel Antônio da Silva à prefeitura, que acabou vitoriosa no final do ano. O frei reproduziu tensões que antes dele também envolveram Dom Bessemans e protestantes locais — conflitos que, ao que tudo indica, tinham mais a ver com a indisposição católica com outras religiões do que o contrário. Essa mistura de política e religião, portanto, não é novidade em Iporá.

Em 1959, Frei Henrique foi substituído por missionários passionistas vindos dos Países Baixos, responsáveis pela direção da Prelazia de São Luís de Montes Belos (criada em 1961), inaugurando um novo capítulo, mais moderno, na história do catolicismo no oeste de Goiás. Entre 1959 e 1961, ele foi Pároco na cidade vizinha de Israelândia, conforme lemos na página da Paróquia São João Bosco. Contudo, a partir daí, sua trajetória torna-se mais difícil de rastrear.

Registros da Cúria Diocesana de Anápolis apontam que Ciocci atuou como pároco em Nova Veneza, na Paróquia Nossa Senhora do Carmo, entre 1973 e 1981, e depois em Petrolina de Goiás, na Paróquia Santa Maria Eterna, até 1988. Seu nome também é citado, embora sem detalhes, na página da Paróquia São Judas Tadeu, em Goiânia. Frei Henrique Ciocci faleceu em 12 de agosto de 1993, aos 74 anos. Ainda não posso dizer com precisão onde ele foi sepultado, mas possivelmente tenha sido em Goiânia. De toda forma, sua atuação em Iporá e região, como sacerdote, foi parte do momento em que a Igreja Católica aprofundou suas raízes institucionais nesse canto do sertão goiano.


Sem fontes históricas, método e paciência, não podemos interpretar o passado. Além dessas qualidades, a generosidade de terceiros é vital para o acesso às fontes e informações. Por isso, agradeço ao pároco Pe. Tarcílio José da Maia, da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora de Iporá; ao Frei Cristiano Bhering, Reitor do Santuário de Nossa Senhora do Rosário, na Cidade de Goiás; ao Pe. Rogério Silva de Moraes, Chanceler da Cúria Diocesana de Anápolis, e ao secretário daquela cúria, Renato Santos. As fontes da imigração foram levantadas no FamilySearch, onde inseri parte da biografia de Frei Henrique Ciocci. Não menos importante, o manuseio das fontes do Livro de Tombo da paróquia de Iporá foi possível graças ao trabalho de digitalização do discente e bolsista do Curso de História, Yan Carlos.

Se você gostou deste texto e se interessa por história, em breve a UEG – Unidade Iporá oferecerá seu vestibular para o curso de História. Essa é sua chance de transformar sua paixão em um caminho profissional e cientificamente orientado em um curso gratuito e perto de você.

Texto de João Paulo de Paula Silveira
Graduado e Mestre em História pela UFG, Doutor em Sociologia pela UFG. Docente do Curso de História da UEG, Unidade de Iporá, e do Programa de Pós-Graduação em História da UEG, Campus Sul, Unidade Morrinhos. Pesquisador das religiões no mundo contemporâneo, com trabalhos publicados sobre novas religiões, espiritualidades e interfaces entre religião e meio ambiente. Coordenador da Associação Brasileira para Pesquisa e História das Religiões (ABHR), Regional Centro-Oeste, e co-coordenador do Laboratório de Pesquisa em Religiões e Modernidades (LAPREM) da UEG.

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