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Educação e civilidade


Texto de Alan Oliveira Machado

“Ora, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos”. Michel Foucault

Eu gosto de pensar a educação sempre partindo de uma tese que Freud defende no seu livro Totem e tabu, de 1913. Nesse ensaio, o criador da psicanálise propõe que a passagem de um estado natural de existência para um estado cultural é fruto do reconhecimento do outro como alguém que como eu deseja e quer a vida da melhor maneira possível. Uma vez reconhecido o desejo do outro, o ser humano impõe a si regras de sobrevivência coletiva que regulam os impulsos em nome da suportabilidade da vida. E o que isso tem a ver com educação? Tudo. A educação, num sentido amplo, é que molda o ser humano para essa vivência coletiva. 
A vida sem regras é insuportável. A educação prepara o humano para a vida gregária, essa vida sem a qual não seriamos o que somos. O próprio Aristóteles já nos advertia sobre isso: “O homem é um animal político”. Um animal político é um animal da pólis. Pólis é cidade, lá no longínquo texto aristotélico que trata de como os seres humanos dependem da vida gregária para existirem enquanto tais. Em latim cidade é civitas, de onde vêm os termos civil, cidadão e civilização. Nesse caso, a educação civiliza, trabalha na construção e sustentação de uma cultura que privilegia a coletividade, a polis. A ética da educação, então, não pode ser outra, é a ética do coletivo, do comum. Ela rege, portanto, sobre modos de pensar e de agir suficientes para a estabilidade das relações humanas, que são diversas. Como dizia Aristóteles: “uma cidade é uma pluralidade”. Esta é a marca que define a educação como uma campo constante de desafios: lidar com a pluralidade. 
A reflexão e a prática pedagógicas devem lidar com o plural e com as implicações políticas que isso acarreta nas relações sociais. Se a educação molda corpos para a vivência coletiva é preciso sempre se questionar o que é aquela vivência coletiva, a quem ela interessa. Se na boa e regulada vida de uma comunidade existe uma grande quantidade de pessoas desprovidas dos bens materiais, econômicos e culturais; pessoas segregadas por castas, pela cor da pele, pela etnia, pelo gênero, é preciso problematizar os princípios da educação que permite tal disparate. É preciso se perguntar sobre qual ideologia toma a mão da escola no cumprimento de seu papel civilizador. Daí sempre estarmos atentos, desconfiados e dispostos a questionar. O que uma escola ensina é decidido por quem? Quais os critérios para definir o que é conhecimento? O que é ensinar? Quando alguém se propõe a responder essas questões fundamentais para a educação o faz desligado da ideologia? Claro que não. Por isso mesmo não se deve dizer que escola e ideologia são incompatíveis. Pelo contrário, só existe escola porque existe ideologia. Só existe educação porque as pessoas pensam sobre o que é o ser humano, sobre como ele deve ser, como deve se comportar e sobre o que ele deve saber para tanto. 
E, em sintonia com Paulo Freire, que dizia ser o homem uma obra inacabada, em constante mudança, a educação jamais pode estagnar em modelos e compreensões pétreas. Ela deve o tempo todo fazer seu próprio escrutínio. Por isso mesmo é sempre bom perguntar sobre os interesses e o lugar de poder que ocupa quem se propôs a responder essas questões, pois as respostas e proposições não estarão desvinculadas do lugar de poder e dos interesses que constituem tais sujeitos. Há visões de mundo que não seguem os melhores princípios éticos reveladores de uma educação para a civilidade. Como sustenta Paulo Freire:

“A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar”.
É preciso estar atento àqueles que advogam a imutabilidade do mundo. Sobretudo quando exorbitam no mundo injustiças, desigualdades, violência e ignorância. Nesse sentido, nunca é tarde para ouvir o que disse Foucault:
” em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que essas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso”.
É isto: os discursos circulam e se circulam é porque alguém os faz circular, é porque há corpos tomados por eles moldando a si e moldando ações que determinam o funcionamento do poder. É imperioso aprender a pensar sobre essa condição humana. A educação precisa ensinar a olhar para si não desvinculado dos circuitos de afetos e de poder que fazem os sujeitos aderirem a certos modos de estar no mundo. Então é um dever ético do educador acompanhar criticamente o movimento dos discursos, sua problematização no espaço escolar, como modo de defesa de uma educação com firmes propósitos democráticos e civilizatórios.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009.
ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Veja, 1998.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2000.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

Alan Oliveira Machado é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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