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Foco em Franz Kafka: um objeto perdido que persiste?

Alan Machado

Essa espécie de angustiante seria o infamiliar e, nesse caso, seria indiferente se ele mesmo era originariamente angustiante ou se carregava algum outro afeto consigo. (Freud, S. In: Das unheimliche.)

Outro dia encontrei um conto de Franz Kafka bem estranho. Aliás, o que não é estranho em Kafka? O conto curtíssimo se chama A preocupação do pai de família, mas pode ser encontrado também com o título Odradek, que é o nome do personagem. Se me causou incômodo a leitura de Metamorfose, ali pelos 20 anos de idade, encarando aquele mundo angustiado de Gregor Samsa, imaginem esse misterioso Odradek.

A curta narrativa a que me refiro tem início com uma discussão puramente de linguagem. O narrador lança o nome de seu personagem e discute a dificuldade de definição. Para ele, as definições são insuficientes: nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra. E eu pergunto: seria Odradek esse significante arredio à simbolização cuja persistência em uma ordem simbólica soaria mais como um furo? Odradek seria o ponto de tensão que se instaura na rede significante quando no deslizar do significado sob o significante sobra um átimo de vazio entre um significado que se foi e outro por vir e que persiste à revelia do que vem?

Da tentativa fracassada de dar origem a Odradek, buscando raízes e sentidos etimológicos no eslavo e no alemão, matrizes dos povos iugoslavos, resta ao narrador do conto uma certeza: ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse realmente um ser chamado Odradek e é então que Kafka se põe a descrever esse ser que avilta a rede simbólica pelo simples fato de estar ali lançando um sem sentido num mundo que não tem razão de ser sem algo que denote finalidade e sentido.

A partir da descrição do personagem notamos que é uma espécie de carretel de linha estilizado; que tanto tem a ver com a escrita, com a narrativa, pensando-se a narrativa como a trama de fios que vai tecendo uma história, com ação e vidas pulsantes, mas que também pode ter a ver com a infância uma vez que o narrador diz que o personagem tem uma capacidade de entendimento linguístico de uma criança e quando o descreve, o caracteriza como um carrinho de carretel, embora também desencaixado dessa função: Não é apenas um carretel; do centro da estrela sai uma hastezinha e nesta se articula outra em ângulo reto. Com a ajuda desta última de um lado e um dos raios da estrela do outro, o conjunto pode ficar em pé como se tivesse duas pernas. O carrinho de carretel é um brinquedo rústico que consiste em um carretel de linha feito de madeira, atravessado por uma liga fina de borracha presa em uma das extremidades por uma pequena rodilha de parafina e na outra por um palito de fósforo, que girado torce a liga e faz o carretel se movimentar de forma desajeitada. Essa descrição de um brinquedo artesanal de infância, uma feliz bricolagem, torna o personagem de Kafka fora do comum, quando seguimos a descrição humanizada que o autor imputa a ele.


Odradek é algo de difícil classificação, difícil de apanhar. Fala e ouve apesar de que não lhe façam perguntas complexas, porém se fala tem algo de humano, da ordem significante. Seria um isso que fala? Um estranho objeto perdido da infância, que permanece e atravessa as eras da consciência sendo o que é, arredio e inapreensível? Kafka tem uma resposta: o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira. Nada mais podemos dizer, porque Odradek tem extraordinária mobilidade e não se deixa capturar. Ora vejam, um objeto que fala precariamente, que se mostra e, no entanto, que não se deixa capturar? Parece o próprio inconsciente, com seus restos de infância em movimento, que redundam em enigmas àqueles a quem se mostra; que perdura à revelia do tempo e das gerações.

Indo mais adiante, Odradek também pode ser a língua eslava, originária do autor, aquela aprendida no seio das relações primárias. Pode ser o próprio Kafka perdido entre ser eslavo ou alemão, entre ser eslavo e escrever em alemão. Parece a própria literatura atravessando o tempo e virando o enigma que faz a máquina da linguagem humana girar, impulsionada pela tensão do vazio, da angústia, da falta de sentido que precisa ser reposto para amenizar o incômodo, o estranhamento, como dizia Freud, o unheimlich. A meu ver, Odradek é o mais misterioso personagem de Kafka. Ele retira do leitor a possibilidade de lê-lo de imediato, às vezes parece apenas um significante vazio que nos angustia. Por fim, entrego a Kafka o ponto final deste texto com o ponto final enigmático de sua narrativa: Tudo que morre teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isto não acontece com Odradek. Descerá a escada arrastando fiapos frente aos pés de meus filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal a ninguém mas a ideia de que possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim. Há braços!
Referências
FREUD, S. O infamiliar. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
KAFKA, F. Odradek, A preocupação do pai de família. In: Um médico rural: pequenas narrativas. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

Texto de Alan Oliveira Machado, que é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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