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Iporá, uma passagem! Relembrando Teodoro, no final da década de 70

Assim que terminei o curso de Direito decidi me casar, pois já namorava a moça há dez longos anos.

 

Casei e mudei, vez que fui convidado por uma prima, Maria Augusta do Carmo – então advogada com banca já conceituada na cidade mato-grossense de Barra do Garças -, para trabalhar em seu escritório.

 

Isso se deu no final da década de setenta, entre 1978 e 1979. Lembro-me bem que um dos meus primeiros trabalhos como advogado recém formado – sem malícia e experiência – foi “tirar” um estelionatário da cadeia. Ao sair o espertalhão pagou meus honorários com um cheque (!). Mas essa é outra história, que contarei em outra ocasião. Não queira o bondoso leitor ou leitora adivinhar o final da mesma, ou o resultado do cheque, pois, repito, direi em outra crônica.

 

Fiel ao título acima, narro agora um fato pitoresco acontecido comigo há muitos anos, durante uma de minhas viagens de Barra do Garças a Goiânia. Naquela época tal trajeto era feito, em grande parte, por estrada de chão. Saindo da Barra e “pulando” os rios Garças e Araguaia, já se encontrava o viajante na pequena cidade goiana de Aragarças. Dalí, o caminho usual era por Bom Jardim, Piranhas e, após muita lama ou poeira, conforme a estação do ano, chegava a Iporá, onde, finalmente, o intrépido viajor “pisava” a negra e desejada estrada asfaltada, rumando, mais animado, para a capital goiana.

 

Como de costume, eu gostava de fazer uma parada em Iporá (terra dos meus amigos Edival Lourenço, brilhante escritor e operoso presidente da União Brasileira de Escritores-UBE/GO; Adjair Lima, companheiro da distante infância – quando os nossos pais abriram a foice e enxada a Rua 105, no Setor Sul, nesta capital – e ex-deputado goiano, que migrou para o Tocantins; também do jovem Roosevelt Paiva, advogado atuante e Procurador do Município de Aparecida de Goiânia, meu confrade). Pela pequena amostra acredito ser Iporá o berço de muitos goianos ilustres, de boa cepa e bons talentos.

 

Mas, voltemos ao nosso assunto. Naquela cidade, muitas vezes eu almoçava na “Churrascaria da Fia”, ao lado de um posto de gasolina, onde era servido um delicioso e suculento cupim de bola. Nesse dia, sem apetite, resolvi não almoçar. Cansado da viagem em estrada poeirenta e esburacada, sob intenso calor, após abastecer o velho e surrado Chevette no citado posto, resolvi entrar um pouco mais no centro da cidade, a fim de comprar cigarros. Parei então na porta de um pequeno comércio, misto de bar, armazém e mercearia, onde pedi uma carteira de cigarros e uma cerveja gelada, para amenizar a canícula. Sentei-me a uma pequena mesa de metal na calçada, à sombra de uma frondosa árvore – uma mangueira ou munguba, não me lembro bem -, a fim de um rápido e refrescante descanso, enquanto bebia a cerveja e fumava um cigarro, absorto, contemplando a bela serra que se erguia de um lado da cidade, que mais tarde descobri chamar-se Serra do Buriti. Nisso, surge de repente, do nada, um tipo estranho, meio amalucado, mas com olhos vivos que denotavam certa inteligência. Encarou-me tranquilo e pediu que lhe pagasse uma pinga. O pedido foi feito de chofre, mas sem nenhum servilismo, naturalmente. Pego de surpresa e abstraído como estava, demorei alguns segundos para recair na real e atendê-lo. Antes que o fizesse, alguém disse: – “Moço, esse é o famoso Tiodoro, repentista doido. É amigo nosso, daqui da cidade. Paga a pinga pra ele que ele faiz um verso de improviso pra nóis, na bucha”!

 

Ôps! Aquilo me chamou imediatamente a atenção, despertando minha curiosidade. Levantei lépido e fui ao dono do boteco (tipo carrancudo), autorizando-o a servir a dose de pinga. Ao receber o copo com a cachaça salivou visivelmente, remexendo água na boca, e, olhando em volta, procurando algo, Tiodoro avistou um saco de aniagem no chão, escorado na porta de madeira do botequim, tomado pelo meio de pequi em casca. Pediu então ao proprietário da espelunca que lhe desse um caroço da fruta, a fim de roê-la como tira-gosto da pinga. A resposta foi rápida, e enérgica a negativa: – “O meu piqui é prá vendê e não prá dá”!

 

Indignei-me com a sórdida sovinice do vendeiro e, pulando novamente da cadeira, afirmei-lhe que iria comprar e levar todo aquele pequi, dizendo-lhe também que desse um caroço ao repentista, ansioso que me encontrava para ouvir seu improviso.

 

Assim foi feito. Ato contínuo, deu-se a cena bizarra. Ali, em pé na calçada, meio cambaleante, com o copo de cachaça numa mão e o caroço de pequi na outra, cercado por uns poucos e expectantes curiosos, Tiodoro contemplou, calmo, compenetrado e pensativo, o alto da Serra do Buriti e, em seguida, virando-se para mim, sapecou:

 

– “Lá em cima daquela serra tem palmeira, tem murici. Tem muita moça bunita, tem cabra bão no fuzí. Mas aqui em redó meia légua… (neste ponto fez ligeira pausa e, esticando jocosamente o beiço para o interior do boteco, arrematou): … tem cabôco fidumaégua que nega inté um caroço de piqui”!

 

Seguiu-se uma explosão de gargalhadas dos presentes. Eu ri barbaridade, satisfeito, realizado, principalmente pelo “troco” dado, de maneira rasgada e inteligente, ao vendeiro sovina. Mas, de repente, o dito cujo surge na porta da venda. Todos se calam, sérios, desviando os olhos, a maioria erguendo as vistas para o alto da serra.

 

Paguei minha conta, segurando muito para não rir da cara do comerciante miserável. Despedi-me de todos, dei um abraço apertado em Tiodoro e, entrando em meu Chevette branco, como um cavaleiro andante que monta em seu bravo corcel, após conquistar a vitória em uma batalha, tomei o rumo de Goiânia, sorrindo e repetindo mentalmente os dizeres da trovinha genial. Decorei sem demora aqueles versos… e jamais os esqueci!

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