Texto de Alan Oliveira Machado
Esses dias conversava com um colega historiador sobre o quadro de expectativas políticas do momento. Das palpitações de seu desassossego intelectual veio a expressão “monopólio da esperança”. Dizia ele que essa miríade de coaches, mentores e pastores que inunda a vida cotidiana, capitalizando o desespero de milhões de pobres e desvalidos emocional e financeiramente tomou para si o monopólio da esperança.
A esperança tem a ver com espera, com confiança. Não com espera e confiança passivas, inermes, mas inquietas, proativas, ansiosas feito um faminto que revolve os escombros da vida à procura de comida. Para os gregos antigos a esperança era filha da Noite (Nyx) e mãe da Fama (Fême). Vejam só que bela imagem: a noite cobre tudo de escuridão e nos impede de enxergar o horizonte à frente. No entanto, nós humanos tiramos dessa escuridão alguma razão para continuar a existência, algum fio de sentido ao qual nos prendemos para nos safar das garras assustadoras do medo e da angústia que a falta de horizonte, a ausência de forma e a impossibilidade de nomear o mundo caótico produzem. Esses frágeis fios, que nos mantém vivos, são a esperança, a filha da noite. Nos agarramos a eles por que neles estão a nossa ânsia de viver. É deles que virão o triunfo, o sucesso, aquilo que, conforme os gregos, é a Fama, ou seja, o reconhecimento, a filha da esperança.
No Brasil de meados dos anos de 1980, no umbral da noite escura produzida pela ditadura, o monopólio da esperança estava com aqueles que lutaram contra o regime autoritário em vigor há vinte anos no País. A maior parte dessa gente era composta por progressistas, religiosos, intelectuais, artistas, sindicalistas, ativistas ambientais e dos direitos humanos, por pessoas simples e insatisfeitas que foram reprimidas, perseguidas ou presas em razão das ideias e dos sonhos. A Constituinte de 1988 foi o limiar do momento em que aflorou a esperança, brotada nos estertores do regime sombrio. Os sonhos de liberdade, de democracia, de cidadania, de ética política, de organização comunitária, de lutas por direitos e identidade se espalharam pelo Brasil dissipando muito da sombra que persistia. No início dos anos 1990, Paulo Freire já apontava a necessidade de uma Pedagogia da esperança, como forma de não se perder no mundo. A força da esperança, se desordenada, poderia muito bem transformá-la em distorção nefasta: “Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera”. (Freire, 1992). No horizonte utópico que se formou nos anos seguintes, movimentos feministas, de negros, de religiões diversas, das artes e do pensamento foram multiplicando fios de esperança até culminar na eleição de Lula para seu primeiro mandato.
Mas aquilo que Paulo Freire já criticava no início dos anos de 1990, “a democratização da sem vergonhice”, com o tempo, engoliu os governos lulistas e dissipou os ventos da esperança a ponto de a energia esperançosa que as ideias e práticas progressistas alimentaram no País virar uma força amarga, cheia de frustração e ressentimento, chaga aberta onde se alojaram as sementes do ódio e os miasmas daqueles que se valeram da escuridão do regime militar para encampar seus projetos lúgubres. Na falta de luz para enxergar, no desespero da pobreza mental e material, começaram a pulular falsos profetas e vendedores de esperança. A enganosa luz da prosperidade a ser alcançada como um passe de mágica, vendida com uma força retórica jamais vista, fez milhões de brasileiros engrossarem os rebanhos de coaches, de maus pastores e de todo tipo de vigarista que vive de oferecer o que jamais vai entregar: uma vida próspera e feliz para os seus seguidores. Contudo, se não entregam o que prometem, por que esses condutores de massas cada vez mais inflam as redes sociais, os meios de comunicação, a política e os meios educacionais, apinhados de seguidores? Por que eles vendem a esperança. Eles detém o monopólio da esperança, aquilo que os progressistas não sabem mais como usar.
Qualquer ser humilhado, preterido, desprovido de capital cultural e econômico, como diz Jessé de Souza: mais do que riqueza, quer acolhimento e reconhecimento. É exatamente isso que igrejas neopentecostais e coaches fazem. Quando um coach diz “você pode, você consegue porque você é superinteligente, apenas não destravou o seu cérebro” ou um pastor afirma “Você é um escolhido de Deus, ele vai te proteger de todo o mal, vai operar milagres em sua vida aqui nessa igreja. Você é superior a qualquer um que não está nesse caminho” etc, oferecem aos desvalidos e humilhados aquilo que o próprio sistema tira deles diariamente: a condição de eu, de gente, de alguém que tem algum valor. Por fim, coaches e pastores dão à vida desesperançada dessas pessoas fios de esperança para se segurarem. É por esse caminho que as causas da pobreza, da desumanização e da humilhação são encobertas, mantendo os desvalidos presos à ideia de que a culpa de sua desgraça é pessoal, que basta orar, aceitar e se corrigir que a coisa anda, basta pensar positivo e se submeter às orientações do coach que as coisas melhoram.
Como, nesse viés, definitivamente as coisas não mudam, a escassa ração de reconhecimento e acolhimento oferecida diariamente é recebida como um alívio que mantém os seguidores na ilusão de que a vida está de fato melhor. Assim, a esperança inquieta e proativa que deveria salvá-los da escuridão perpétua da condição de desvalidos, de massa de miseráveis apegados às exigências e valores dos opressores, se cala e os mantém cegamente como fiadores de sua própria desgraça. Nesse caso, parece que a real esperança ficou presa na ânfora de Pandora enquanto essa gente enganadora, montada nos males que de lá escaparam, tange o rebanho para onde quer. Por isso, é preciso devolver a esperança ao seu verdadeiro propósito, dissipar a escuridão da vida e calçar os caminhos para uma vida digna, satisfeita e interessante. Há braços!
Referências:
Freire, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Souza, Jessé de. O pobre de direita: a vingança dos bastardos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2024.
lan Oliveira Machado é escritor e professor na UEG Iporá