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Tolos do sentido, joguetes do real

…essa relação pretensamente harmônica entre o que vive e aquilo que o rodeia, é perturbada pela insistência desse saber, desse saber sem dúvida herdado – não é por acaso que ele está lá – e que o ser falante, para chamá-lo como eu o chamo, o ser falante o habita, mas não o habita sem todo o tipo de inconvenientes. (Lacan, Seminário XXI)

As coisas estão aí, num deserto inóspito quando se suspende o tempo e o sentido. Sem tempo e sentido, o espaço cheio de coisas é somente uma clausura indecifrável, bolha, não raro, sufocante e cheia de angústia. Talvez viver seja evitar sempre se perder do tempo e do sentido. A vertigem que vaza vez ou outra pelas frestas da nossa teia simbólica nos diz que o deserto inóspito nos espera; basta pisar um pé fora da teia, a esterilidade gélida dele nos invade. Essa foi a impressão que tive quando em contato com um tio, um sujeito cuja impressão em mim é de que já não encontra liame entre tempo e sentido e desaba solitário na vertigem da falta de espaço.
Fui visitar outro dia esse tio que se encontra na casa dos 97 anos de idade. É muito tempo vivido. Para alcançar tal longevidade é preciso que o tempo teça e seja tecido pelo sentido de modo a configurar espaços nos quais o sujeito vai se instaurando pelo crivo das pulsões capitaneadas pelo bastão do desejo. E preciso ter desejo vagando em busca de objetos, se apoderando do tempo pelas significações que fundam territórios, ninhos para objetos que desvanecerão, rachando a redoma simbólica dos desejos e fazendo-os voarem, às vezes tímidos e inseguros, sem rumo, até se recomporem em outra teia de sentidos que redundará em nova territorialidade. Assim, unidos e indiscerníveis, tempo e sentido nos dão a noção de espaço para além do deserto de tudo. Esse espaço construído pela conjunção ou pela instauração recíproca do tempo e do sentido nos permite experimentar o mundo e fazer dessa experimentação o móvel da existência.

A vida é essa experiência feita de tempo e sentido que se desenrola entre o nascer e o morrer. Enquanto houver tempo e sentido haverá espaço, haverá vida, haverá inevitavelmente desejo vagando e construindo os lugares das experiências e vivências. Não somos como os lírios do campo que nem trabalham, nem fiam, somos feitos de signos e significações, somos tecelões; das elaborações dessa matéria produzimos um mundo só nosso, por isso quando somos, como os lírios, lançados ao fogo da finitude, nos vemos tomados pelo incômodo.

Meu tio me pareceu consciente de que está na fronteira da existência, daí sua inquietude. Há algum resto de sentido grudado a fiapos de tempo quando olha para trás, mas o agora em que se percebe o faz experimentar uma profunda angústia. Os sentidos se esgotaram e o tempo se perde no presente não nomeável. Por isso, as únicas palavras que ele repetia para mim, insistentemente, enquanto apontava para as coisas no quarto eram estas: essas paredes, essas coisas… são o quê, para que servem? Nada, não é nada! Não tem sentido! Qual o sentido disso aqui? O que eu estou fazendo aqui? Não tem sentido! Nada tem sentido! E me olhava inquieto enquanto falava das coisas, e os olhos chegaram a marejar num choro sofrido, como se estivesse abandonado no deserto frio do real sem nome e sem desejo suficiente para poder nomear e sem corpo para responder com significados e sentidos aos dilaceramentos tão desoladores do momento.

Meu tio, por alguns instantes, me pareceu um náufrago sem tábua de salvação a que se agarrar, perdeu a vontade de codificar, de urdir seu destino fiando tempo e sentido para obter a estampa espacial em que possa se abrigar e continuar a brigar na existência. Na fronteira a que os seus 97 anos o levou não existe horizonte, falta chão e paisagem. Meu tio não era menos tolo do que eu, por isso o seu mal-estar diante da falta de sentido, por isso tanta pergunta espantada sobre a falta de significado. Um tolo é aquele que acredita que o sentido dá conta do real da vida, mais que isso, um tolo acredita que o sentido é o real da vida. Meu tio não errava, lidava com um mundo bem assentado nos símbolos. Foi um soldado dos sentidos cristalizados, por isso não errava nos dois modos de entender o termo: no de cometer erros e no de vagar sem rumo, daí sua existência tola, que resiste e estranha a sombra e o frio do real.

Se no momento fronteiriço em que se encontra ainda fosse um tolo completo como eu, meu velho tio haveria de juntar uns galhos secos e fazer uma fogueira para aquecer um pouco mais a sua existência e obter alguma luz sob a qual poderia urdir alguma paisagem com cor, calor e aconchego nesse anoitecer da existência. Mas não, parece que ele caiu num buraco da teia e se espatifou no deserto de forma que as suas palavras soam vazias, as coisas se mostram disformes ou com uma ordem desconhecida, com tudo se configurando muito duro e intenso para o seu precário aparelho de linguagem codificar. Já sem a força das pulsões e sem o leme firme do desejo, já sem horizonte de objetos, com o tempo minguado, os sentidos escassos e o espaço quase inexistente lhe restou clamar por aquilo que não se encontra fora do nosso tolo mundo da linguagem: o sentido. Como tento dizer para mim todos os dias, para parecer menos tolo, disse a ele que nunca houve sentido em nada, a gente é que dá o sentido.

Texto de Alan Oliveira Machado, que é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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