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Texto III–Relembrando mais sobre irmãs religiosas:Elisabeth e Gabriela

Irmã Elizabeth, à esquerda, e Gabriela, à direita. Foto tirada em 1999.

A nosso convite, o historiador João Paulo Silveira (UEG de Iporá) tem escrito textos históricos para o Oeste Goiano, especialmente sobre religiosos que atuaram nesta terra. Dois outros textos foram publicados recentemente. Acesse aqui: TEXTO I. TEXTO II. O trabalho de pesquisa de João Paulo é feito em parceria com o Padre Rodrigo Antônio Alves Ferreira, CP.

No terceiro e último texto a respeito das Irmãs Passionistas Missionárias de Santa Gema, em Iporá, trataremos das Irmãs Elisabeth Roijers (1928-2006) e Gabriela Schellekens (1927-2019). As religiosas viveram por mais de três décadas em nossa região, onde se dedicaram às atividades orientadas pela ética religiosa do cuidado daqueles que enfrentam vulnerabilidade: a preferência pelos pobres. Entre muitas outras coisas, elas também se dedicaram a trabalhos que incluíam a educação e a saúde da classe trabalhadora, em especial das mulheres. Na Igreja, trabalharam nas pastorais carcerária e da criança, além da Eucaristia e do Coral. Como outras religiosas, realizaram visitas às famílias católicas na cidade e na zona rural de nossa região. 

Irmã Elisabeth Roijers 

 Elisabeth nasceu em 21 de abril de 1928, em Eindhoven, Países Baixos. Filha de Roinier Francisco Cornélio Roijers e Bethzy Bots, ela optou pelo ingresso na Congregação das Irmãs Passionistas Missionárias de Santa Gema, em 1956. Professou os votos religiosos em 5 de maio de 1959. Ainda em sua terra natal, estudou enfermagem, ofício importante para sua futura tarefa missionária nos trópicos. 

Elizabeth fez parte do primeiro grupo de quatro religiosas que chegaram ao Brasil em 1960. Após um ano em Goiânia, onde aprendeu a língua portuguesa, mudou-se para Anicuns, residindo naquela cidade por dois anos.  Em 1963, a religiosa chegou a Iporá acompanhada por Irmã Bernadeth, onde viveu por 37 anos. 

A memória católica da região registra que Irmã Elizabeth foi uma mulher esclarecida, bem formada, dedicada ao trabalho e humilde, o que certamente a aproximou de nossa comunidade. Dedicou-se especialmente à saúde e à formação das mulheres, de acordo com os preceitos religiosos e as possibilidades da época. Entre suas iniciativas, destacou-se a criação da maternidade em 1967. Nela, Elizabeth pôde exercer a dupla vocação de religiosa e de enfermeira. 

A religiosa chamou atenção das autoridades durante a Ditadura Militar. Em 1970, Irmã Elizabeth foi fichada pelo Serviço Nacional de Informação, órgão que a vigiou depois de ter recebido um informativo católico enviado da Bélgica. Naqueles dias de repressão e censura, muitos religiosos estrangeiros foram vigiados pelos agentes do governo ditatorial. O órgão do aparelho autoritário sugeria que a passionista tinha recebido correspondências estrangeiras vindas de países comunistas ou daqueles que toleravam a existência de organizações políticas simpatizantes ao comunismo. Anos mais tarde, outros religiosos também sofreram acusações infundadas. 

Durante 1978 e 1979, Irmã Elisabeth trabalhou como enfermeira no Posto de Saúde de Iporá. Entretanto, acabou dispensada sob o pretexto de que não havia a necessidade de manter uma enfermeira com curso superior. Decepcionada, a religiosa viajou de férias para os Países Baixos, como era práxis entre os religiosos batavos que viveram aqui. De volta ao Brasil, retomou sua vocação como enfermeira ao trabalhar no Hospital Cristo Redentor e, a partir de 1982, passou a trabalhar no Hospital Municipal, onde foi diretora geral.  

Outro aspecto da vida religiosa de Irmã Elisabeth em Iporá, que nos chamou a atenção, foi sua dedicação às atividades educativas, formais e informais.  Nos primeiros anos em Iporá, ela coordenou a creche Chapeuzinho Vermelho, além de promover e estimular cursos de enfermagem, de corte e costura, de culinária, de manicura e pedicura. Na Pastoral Carcerária, orientou os reeducandos, promovendo a leitura da Bíblia e também realizou atividades caritativas dedicadas a esse público. Alguns trabalhos feitos por aqueles indivíduos foram, inclusive, comercializados na livraria da paróquia. 

Após a volta definitivamente à pátria natal, Irmã Elizabeth enfrentou um câncer de pulmão. Discreta, ela não compartilhou com as outras religiosas sua enfermidade. Em quatro de setembro de 2006 morreu, repentinamente, aos 78 anos. 

Irmã Gabriela Schellekens

Johanna Cornélia Schellekens nasceu em 26 de dezembro de 1927. Fez sua profissão religiosa como irmã passionista em 9 de julho de 1951, quando recebeu o nome de Gabriela. A religiosa foi uma das primeiras jovens a se unir a Irmã Vicência (1919-1990) na fundação da congregação passionista batava, em dezembro de 1948.

Irmã Gabriela chegou ao Brasil em 1964. Antes de vir para Iporá, viveu por três anos em Anicuns. Em 21 de junho de 1967, chegou em nossa cidade, onde viveu a maior parte de sua vida.  A religiosa trabalhou como sacristã na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, atualmente Nossa Senhora Auxiliadora. Cuidou da catequese, da liturgia e dos grupos de canto. Além disso, organizou grupos para celebrar a novena de natal nas famílias. 

Seu trabalho não foi restrito à cidade de Iporá. Na companhia do Padre Petrus Beerkens, Gabriela também se dedicou aos católicos que viviam nas cidades próximas de Iporá e àqueles que habitavam a zona rural da região, conforme lemos no n. 610 do Boletim Comunitário da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, publicado em 2000.

A memória católica regional menciona que Irmã Gabriela costumava instruir as crianças a partir de cantos que ela escrevia em peças de cartolina dispostas em uma espécie de varal.  A religiosa exigia das crianças a leitura e a memorização das canções, que depois eram ensaiadas para o coral da Igreja. 

A Irmã passionista era reconhecida como caridosa. No setor José Cândido Vieira, coordenou a construção de 56 casas, uma capela e um salão comunitário. Segundo lemos no número 382 do já citado Boletim Comunitário da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, a capela foi erguida em 9 de abril de 1990, graças ao aporte da família e de amigos da religiosa, que viviam nos Países Baixos. Irmã Gabriela se dedicou por quatorze anos à comunidade do Cândido Vieira. 

Dados locais de memória registram que Irmã Gabriela era uma mulher rígida e constante. Ela também não tolerava o que julgava ser falta de organização. Quando chegava a uma casa que lhe parecia desarrumada, logo chamava a atenção dos moradores. Por conta disso, ouvimos uma anedota interessante: as mulheres daquele tempo, quando viam a religiosa se dirigindo ao supracitado setor, o que acontecia especialmente pela manhã, cuidavam às pressas do asseio doméstico. 

Conquanto esse episódio pareça um tanto estranho para o leitor contemporâneo, há registros diversos que apontam o lugar dos religiosos católicos na educação doméstica, a partir de novos saberes que, a princípio, apareceram no continente europeu e que foram trazidos para nosso país a partir do século XIX. Trata-se de algo muito próximo daquilo que o sociólogo Norberto Elias descreveu como parte do “processo civilizador”, conforme, inclusive, notou o historiador Robson Gomes Filho, ao tratar dos Redentoristas em Goiás, no início do século passado. 

Por outro lado, as visitas regulares da religiosa faziam com que muitas famílias a recebessem para tomar café. Consta que, em alguns casos, as famílias deixavam a garrafa e a xícara na mesa da varanda, na expectativa da visita da religiosa que, provavelmente, era uma pessoa de “boa prosa”.  

Chamou nossa atenção, a disposição da irmã ao diálogo inter-religioso, motivado por temas próprios das igrejas cristãs daquele tempo. Segundo relatos que tivemos acesso, a Irmã Gabriela participou de atividades em outras igrejas. Em algumas dessas atividades discutiam saúde reprodutiva e métodos naturais contraceptivos. Em virtude disso, ela é lembrada como amiga por muitas mulheres de outras denominações religiosas de Iporá.

Com a morte de Irmã Benigna Auer, em 1998, as irmãs passionistas decidiram voltar para a terra natal. Em abril de 2000, Gabriela deixou definitivamente Iporá junto com a Irmã Elizabeth, com destino à Europa. Nos primeiros anos longe do cerrado, elas costumavam escrever aos amigos em Iporá. 

Em outubro de 2013, o Padre Rodrigo Antônio visitou as irmãs nos Países Baixos. Ao lado de outras religiosas, Irmã Gabriela morava em uma casa de cuidados especiais para idosos. Indagada sobre o Brasil, a religiosa ressaltou, emocionada, que sentia falta “[…] de tudo, do café”.  Ela ainda fez a seguinte ponderação transcrita aqui em sua integridade: “[…] o tempo acaba com tudo. Tudo destrói, mas aqui vivemos muito bem. Fomos felizes no Brasil. Tudo fizemos como podíamos. Mas as forças acabaram e aqui podemos descansar”. Seis anos após a visita do Padre Rodrigo Antônio, Irmã Gabriela faleceu em Nuland, em sua terra de origem, no dia 2 de junho de 2019, aos 91 anos de idade. Assim como Elizabeth e outras irmãs, Gabriela atuou a partir de um lugar religioso que não ignorava as necessidades sociais de nossa gente. 

Ao findarmos esta série de três pequenos textos sobre as Irmãs Passionistas que viveram em Iporá, procuramos, dentro do possível, ressaltar alguns aspectos de suas vidas em nossa região. Construímos a reflexão com o auxílio de depoimentos e documentos religiosos de tipos distintos, que ofertaram algumas pistas sobre sua estada aqui. Por óbvio, muitos outros aspectos da vida dessas religiosas não figuraram em nossa reflexão, o que certamente exigirá esforços futuros, nossos e de outros indivíduos preocupados com a história regional.

Sabemos que a congregação das Irmãs Passionistas Missionárias de Santa Gema está no fim. Há apenas quatro irmãs vivas, todas elas nonagenárias. Em Iporá, essas mulheres religiosas viveram a maior parte de suas vidas e procuram, orientadas por seus valores religiosos, atuar socialmente a partir das carências diversas que percebiam. Foram todas, além de religiosas, compromissadas com a dignidade humana, com os trabalhadores e com aqueles socialmente desamparados. Como muitas outras mulheres daqueles dias, católicas ou não, as passionistas buscaram influenciar os rumos públicos de Iporá e região, o que certamente significou desafiar uma ordem de coisas que nem sempre percebia essa influência como legítima. 

 Amiúde, quando pensamos em nossa história, tendemos a enfatizar personagens masculinos e por isso deixamos de perceber que a história também diz respeito à experiência das mulheres em seus diversos lugares sociais. Historicizar suas vidas é assumir o compromisso com um tipo de pensamento histórico mais cultivado, crítico e atento à diversidade de personagens do passado, que tornaram o presente possível.  

Esta série de textos foi possível graças à parceria entre o Curso de História da UEG, Unidade de Iporá, a Congregação Passionista em Goiás e o noticioso Oeste Goiano.

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