Este capítulo chama a tenção para os recursos existentes antigamente no campo da farmacopéia, indo desde os medicamentos manipulados ali na hora, até os purgantes, fortificantes, perfumes e cosméticos que eram fabricados no século passado. Conta, também, o importante papel dos farmacêuticos do interior do Brasil, onde não havia médicos. Eles tinham que assumir este papel.
Os remédios que meu pai manipulava
A base principal da farmacopéia daquela época era a manipulação de medicamentos, cujo sucesso dependia não só da capacidade de se manipular aquele monte de ervas e pozinhos nas quantidades homeopaticamente corretas, mas, acima de tudo, de se ter as melhores fórmulas anotadas no caderninho de segredos. E aí a Farmácia Popular ganhava de longe de todas as outras, porque ninguém tinha tantas fórmulas milagrosas como as que o Dr. Jacobson e meu pai juntaram por longos anos. Muitas delas foram trazidas de farmacêuticos famosos da Europa e eram guardadas debaixo de sete chaves. Mesmo aquelas que não tinham vindo de lá eram rotuladas como tal para valorizar o produto.
Lembro-me muito bem dos medicamentos que eram vendidos na farmácia de meu pai na época em que eu era criança. Havia aqueles que eram formulados no laboratório que ficava na parte de trás da farmácia, e os remédios industrializados, principalmente os mais populares, que o pessoal da época gostava de usar.
Além das diversas fórmulas preparadas por meu pai, tinha também os remédios que vinham em grandes embalagens, ou embalagens hospitalares, como eram conhecidas, e que eram reembalados em quantidades menores para serem comercializados. Tinha aqueles que eram embalados em envelopes de papel, seguindo uma técnica que meu pai nos ensinou, e aqueles remédios líquidos, que eram embalados em vidrinhos de penicilina, que a gente lavava, esterilizava, enchia com o líquido certo, pregava os respectivos rótulos e comercializava. Aliás, por falar em pregar os rótulos, lembro-me de que a cola era feita lá no laboratório da farmácia também. Era uma mistura de resina de angico com não sei o quê, levada ao fogo e que virava a goma-arábica.
Dentre os remédios embalados nos envelopinhos, lembro-me bem do Ruibarbo, Sene, Sal Amargo e o Sal de Gláuber. Nos vidrinhos tinha a Tintura de Iôdo e o Mercúrio Cromo, para machucados, e que eram formulados lá mesmo no laboratório da Farmácia. Vinham em forma granulada e era preciso misturar uns diluentes específicos para se transformarem em soluções prontas para uso. Tinha, ainda, o Elixir Paregórico, para dor de barriga; o Ácido Fênico e o Guaiacol, para dor de dentes. Esses vendiam muito, principalmente se se considerar o tanto de rapadura que o povo consumia e a falta do hábito de se escovar os dentes após as refeições. Havia, ainda, um terceiro grupo de remédios, mais raros, que eram as cápsulas e os comprimidos fabricados em umas maquininhas manuais que meu pai tem bem guardadas até hoje. Estes eram para alguns casos mais específicos, como as cápsulas para inflamação de garganta. Só meu pai sabia trabalhar com estas maquininhas e, na hora de prensar os comprimidos, tinha que explicar com paciência para a gente.
Havia algumas fórmulas fabulosas preparadas por meu pai. Uma vez, lá em Bom Jardim, as netas da Maria Bigode estavam com um barrigão típico de verminose. Ele, então, preparou para elas um lombrigueiro à base de Kenopódium e Calomelano, que foi dado em jejum de madrugada, como era o costume da época. O efeito foi quase que imediato. Dado o purgante de óleo de rícino depois, foi saindo tudo quanto havia de coisa ruim na barriga delas. Uma das crianças colocou para fora cento e noventa e quatro lombrigas de porco. Cento e noventa e quatro, sim senhor, contadas pela própria Maria Bigode. Esta senhora chegou a morar em Amorinópolis no fim da década de cinquenta, pois foi o marido dela quem construiu a casa da fazenda do seu Olímpio.
Havia outro remédio famoso preparado por meu pai, chamado Hepatocol. Este medicamento era de uma eficiência impressionante para problemas estomacais, do tipo daqueles que acontecem quando se exagera numa feijoada gorda ou quando a comida não cai bem e a gente começa a “arrotar choco”. Era um remédio de cheiro não muito agradável, à base de extrato de boldo e mais um monte de outras coisas, cada uma mais fedida que a outra, porém era tomar e ficar bom em cinco minutos. Quase todo mundo, naquela época, tinha um vidro de Hepatocol no canto da mesinha do filtro, em casa, para as emergências. Parece que um dos componentes dessa fórmula é difícil de encontrar e meu pai nunca mais fez esse famoso remédio.
Os medicamentos daquela época
Em Campo Limpo como em todo o Brasil, os medicamentos industrializados foram, aos poucos, substituindo aqueles manipulados nas próprias farmácias, mas estes últimos ainda sobreviveram por longos anos. O Biotônico Fontoura era um dos carros-chefe, empurrado pela propaganda do livrinho do Jeca Tatu. Este livrinho era famoso e todo mundo o conhecia. Contava, com ilustrações, a história de um sujeito pobre da roça que só andava descalço, doente, desanimado, pobre, e que tudo que precisava fazer achava difícil. Depois de tomar o vermífugo Ankilostomina Fontoura e, alguns dias depois, o Biotônico, ele sarou, ficou forte, passou a andar só calçado, a ficar animado, trabalhador, enriqueceu, comprou fazenda grande e mandou colocar botina até nos porcos e nas galinhas, para não pegarem vermes pelos pés.
O Biotônico era indicado para estimular o apetite e, como tinha um gosto muito bom de vinho, era consumido quase que como tal. O povo tinha uma fé danada nele. Uma vez meu pai aproveitou uma campanha de bonificações e comprou mil frascos deste produto. Vieram, juntos, um punhado de vidrinhos menores, de amostra grátis. Aí foi uma festa. Entrei no Biotônico. Acho que a minha preferência por vinhos vem desta época. Na realidade, meu pai não receitava isto. Era um medicamento do gosto popular. O pessoal comprava o vermífugo Ankilostomina Fontoura, pedia um fortificante para tomar depois, quando normalmente era dado um ferruginoso, tipo Vinho Tônico Ferruginoso, e um estimulante do apetite, para ajudar a recuperar o peso. Aí é que entrava o gostoso Biotônico. Mas, normalmente, o pessoal chegava e já pedia um vidro deste santo remédio.
Os vermífugos daquela época, fora a Ankilostomina, eram sempre uns vidrinhos de uns remédios fedidos, que a gente tampava o nariz para tomar, normalmente de madrugada. Depois, lá pelas seis da manhã, enfiava por cima um purgante, quase sempre Óleo de Rícino, para limpar tudo quanto era bicho morto que estava dentro do bucho. E era tomar e ficar o resto do dia prostrado, visitando a privada de buraco na parte da manhã toda. Tem muita gente que não aguenta nem sentir o cheiro desse remédio, pelo tanto que era ruim e o tanto que tiveram que tomar quando crianças. O purgante podia ser também a Aguardente Alemã ou o Le Roy. Alguns anos depois apareceu outro vermífugo muito eficiente, mas ainda muito fedido. Eram umas bolinhas verdes, meio gelatinosas, e a gente tomava um punhado, umas oito bolinhas de uma vez, pela madrugada, e ficava arrotando aquilo o resto do dia, meio tonto. Só de lembrar fico repugnando até hoje.
Havia alguns outros remédios muito populares naquela época. A Água Inglesa, os famosos Regulador Xavier números 1 e 2 e A Saúde da Mulher, eram usados exclusivamente por mulheres, alguns para resguardo, outros para controle do fluxo menstrual, tais como atraso ou adiantamento da menstruação. Neste mesmo grupo entrava, também, o Elixir Manet, um anti-hemorrágico muito eficiente.
Tinha o Nujol, um óleo finíssimo, que o pessoal usava para combater intestino preso. Os elixires eram também muito consumidos e serviam para purificar o sangue. Eram muito procurados o Elixir de Inhame, o 914, o Bororó, o Tapajós e o Elixir Velamol. Tinha, ainda, os tônicos ou fortificantes, como o Sanguinol, o Glimiton e o famoso Tutangir, com a figura de um homem engolindo a cabeça de um touro. Na crença popular da época, era tomar e ficar forte como o sujeito do rótulo. Lembra do Emulsão d’Scoot e do Óleo de Fígado de Bacalhau, com aquele sujeito carregando um bruta peixe nas costas, do tamanho dele? E a Aurisedina, para dor de ouvido, que dominava as propagandas de rádio? Era mais ou menos assim: se a criança acordou / dorme, dorme filhinho / mamãezinha chegou / com Aurisedina. Ah! Lembra do Atroveran, para cólicas? E do Calcigenol, para fortificar os dentes e os ossos das crianças? Do leite em pó Nestogeno, do etc e etc… Os xaropes também eram muito procurados. Tinha uns muito eficientes e populares, como o Melagrião, Mel Rosado, Melpoejo, Tussaveto, este um líquido grosso, de cor marron escuro, que tomei muitas vezes. E o Phymatosan?
O pessoal antigo tinha muita fé, também, nas pílulas, ou píula, como era comum pronunciar. A Pílula de Lussen, para os rins; a Erva de Bicho, para hemorróida; a Pílula de Vida do Dr. Ross e as Pílulas Contra Estupor. Para reumatismo, Butazona era tiro-e-queda. Agora, dos comprimidos, o mais famoso e eficiente na época era a Cibalena, para dor de cabeça. Para a mesma finalidade tinha ainda a Guaraína e a Instantina. O Cibazol era muito eficiente para disenteria, principalmente se fosse acompanhado de um tubinho de Leiba, que era um tubinho de vidro com uma tampa de borracha branca que dobrava por sobre a boca do vidrinho (ô remedinho de gosto ruim!). Vendia muito, também, o Melhoral, que tinha uma propaganda no rádio que cantava assim: “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal”. Na década de sessenta surgiu o Melhoral Infantil, com um cheirinho gostoso. Foi um sucesso. Como laxante, nada melhor, naquela época e, me parece, até hoje, que o Lacto Purga ou o Purgo Leite.
Eram muito procuradas, também, as pomadas. A Pomada Minâncora, que vinha numa latinha amarela, era famosa. Servia para quase tudo, desde machucados até para passar nas axilas para “amenizar o cecê”. Tinha uma pomada danada, pouco conhecida do público, mas muito eficiente, que era indicada por meu pai para problemas de furúnculos: era o Basilicão, que vinha em embalagens maiores e que a gente punha nas latinhas para vender para os fregueses. Colocava-se em cima do furúnculo à noite e no outro dia o carnegão pulava fora. Meu primo Julimar teve uma época que andava cheio dos furúnculos e deve ter consumido quase um quilo dessa pomada. A pomada de Penicilina, para machucados, também era muito procurada. Tinha uma pomada preta para reumatismo, muito usada também, de nome Iodofrixon. A pomada São Lázaro era anti-inflamatória e cicatrizante. O Paraqueimol, para queimaduras, e o Hipoglós, para assaduras em crianças e adultos, que estão em evidência até hoje, são antigos também. E tinha ainda as pedras de Canphora, chamadas pelo pessoal de canfôr, que misturadas com álcool eram usadas em luxações.
Os antigos perfumes e cosméticos
Nos dois balcões que existiam na farmácia de meu pai e que separavam a parte destinada aos fregueses da parte onde ficavam os medicamentos, havia o mostruário de perfumes, cosméticos e loções. A linha Glostora era uma das mais populares, possuindo perfumes, óleos para o cabelo e as famosas brilhantinas, que eram muito usadas pela rapaziada da época, para firmar e dar um brilho mais elegante ao cabelo. Eu tinha a impressão que o Toím e o Chiquím do seu Manoel Cearense eram chegados numa brilhantina dessas, mas o Chiquim, um ano antes de falecer, me garantiu que não usava isso. E o Chiquim nunca foi de mentir. Então, acho que eram outras pessoas.
Havia os famosos cremes Pond’s, Sardalina e Antisardina, para o rosto. O Pond´s ou a Antisardina, não sei mais qual, tinha o número 1 e o número 2, e vinha acompanhado de uma espátula de plástico, que continha, em uma das pontas, uma espécie de cone com um buraquinho no meio, próprio para espremer cravos.
Os esmaltes famosos daquela época eram o Risqué e o Impala. E as caixinhas de Pó de Arroz, que toda mulher bonita e moderna tinha que usar? Lembra das linhas Coty e Cashmere Bouquet? Eram apresentadas também como talco, em umas latas compridinhas. Eram famosos, ainda, os perfumes das linhas Tabu e Madeira do Oriente, este último com um pedacinho de madeira dentro do frasco. E a Quina Petróleo Universal, para queda de cabelos?
Os sabonetes não eram os mesmos de hoje. Os mais conhecidos eram os da marca Lever, brancos, que depois viraram Lux, de várias cores; o Eucalol, verde, que trazia dentro da embalagem umas estampas coloridas de lugares lindos, do mundo inteiro; o Vale-Quanto-Pesa, bege claro e de forma meio ovalada; o raro, famoso e caro Phebo, que existe até hoje; o sabonete Life Boy também era famoso. Agora, se a coisa apertasse mesmo, o que valia era o sabão de decoada, feito do caldo obtido jogando água sobre a cinza de madeira ou, então, o sabão de soda, ambos do aproveitamento do torresmo e das gorduras descartáveis, para sua fabricação.
Nos mostruários dos balcões da frente, na Farmácia Popular, ficavam também os batons, as lixas de lixar unhas e os diversos tipos de pentes, tanto os de cabo, para mulheres, como os famosos pentes Flamengo, para homens. Estes vinham em dois modelos: os pentes curtos, um pouquinho mais largos, e os compridos, mais finos. Todo homem moderno, naquela época, carregava um pente Flamengo no bolso de trás da calça e um espelhinho oval (na maioria das vezes com estampa de times de futebol do Rio ou de mulheres peladas), no bolsinho da frente que toda calça tinha que ter. Tirar o espelhinho e o pente do bolso e dar uma caprichada no cabelo untado com Glostora, era o charme da época. Principalmente “fazendo panca” para alguma moça que estivesse por perto
No tempo do frio, com a poeira, a pele trincava ou ficava ressecada. Aí era a vez de passar uma pomada meio cremosa, meio sedosa, de nome Diadermina, que era vendida a granel, embalada em umas latinhas redondas próprias para este tipo de produto. Se os lábios trincassem, havia os tabletes de Manteiga de Cacau, que a gente ficava esfregando toda hora na beicera. Tinha homem que, na falta de coisa melhor, usava era batom mesmo. Lembro-me de ver o João Doutor e o Abílio com os lábios rachados e pintados de vermelho, no mês de maio.
Atendimentos ambulatoriais
O aprendizado de meu pai nos garimpos de Baliza e, depois, em Bom Jardim, credenciava-o a enfrentar muitas situações de emergência. O atendimento na área ambulatorial teve que começar cedo. Quando meu pai era ainda rapazinho, empregado da Farmácia Central, o Dr. Jacobson teve que viajar e deixou-o tomando conta da farmácia. Apareceu, então, uma senhora com um tumor interno no seio, sofrendo muito e com febre alta. Não havia outra solução. O jeito foi repetir o que havia visto o mestre fazer em outros casos parecidos: apanhou uma seringa e umas ampolas de anestésico de dentista, localizou o tumor e aplicou quatro ampolas em torno do seio da mulher. Em seguida, apanhou o bisturi e fez a punção. Saiu, segundo meu pai, mais de um copo de pus. Feita a limpeza, colocou um dreno e ficou uma semana fazendo curativos. Quando o Dr. Jacobson chegou, a mulher já estava curada.
Lá em Bom Jardim, no começo da farmácia, a batalha era dura e ele tinha que dar conta dos casos que apareciam, por honra do Dr. Jacobson e do próprio nome, que precisava se firmar, para se tornar conhecido e de confiança. Nessa época, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, começava a entrar no mercado a penicilina. Era a salvação de muitas pessoas, principalmente em casos de infecção. E era conservada no gelo. Só o velho mestre Jacobson tinha este produto na região, que chegava de avião. De avião sim senhor, porque Baliza era visitada constantemente por gente importante, compradores de diamantes. Então, várias vezes, meu pai teve que sair de madrugada de Bom Jardim montado em uma mula, cortar as dez léguas que a separavam de Baliza, comprar a bendita penicilina na farmácia do Dr. Jacobson, enquanto a mula descansava num pastinho do vô Teodoro. Depois colocava em uma garrafa térmica com gelo, pegava o caminho de volta e chegava ao destino lá pela meia noite. Em seguida, tinha que passar a noite toda na casa do paciente, porque a penicilina daquela época era aplicada de duas em duas horas. E, segundo meu pai, não foi uma nem duas vezes que teve que fazer isto. Consequentemente, não foi uma nem duas vidas que salvou.
Em cinquenta e cinco, logo que instalou a farmácia em Campo Limpo, chegou um rapazinho de nome Mauro Chico, fala fina, apavorado, para ver se meu pai podia ir até o sítio deles, distante uns quatro a cinco quilômetros, para fazer um curativo em seu pai, que tinha tido a perna prensada por uma tora de madeira. Meu pai pegou o material de primeiros socorros, montou num cavalo e foi ver o que tinha acontecido. Chegando, lá estava o seu Zé Chico com a perna quebrada em vários locais e embirrado, dizendo que dali não sairia. Não houve dúvida: ali mesmo meu pai mandou tirar umas talas de taboca ou bambu, não sei bem qual, ajeitou os ossos quebrados da melhor maneira possível e encanou a perna de seu Zé. Depois, ficou uns dois meses ou mais indo todos os dias de bicicleta ao sítio fazer o curativo. Uns três a quatro meses depois seu Zé Chico já estava andando para todo lado, mancando levemente. Pouco tempo depois ninguém dizia mais que ele havia tido algum trauma na perna. Aí a fama de meu pai correu longe e toda a família dos Chico, além de ficar freguesa da farmácia, se tornou nossa amiga, amizade esta que já dura mais de sessenta anos e, se Deus quiser, durará mais outros sessenta, com as gerações mais novas preservando a tradição e o respeito mútuo.
Uma noite, em mil novecentos e cinquenta e oito, chegou à farmácia de meu pai um grupo de pessoas trazendo um senhor que havia sido esfaqueado em uma festa. Era o seu Altino, cunhado do seu Alcides Soares de Melo – que tinha uma chácara e uma cerâmica antes da Jacuba, na saída para o Caiapó. Como não havia médico na região, a solução foi tentar resolver o problema. Feito o curativo com os medicamentos de praxe, meu pai pegou uma pinça com pontos de agrafe (uma espécie de grampo metálico que prendia duas partes da ferida e a fechava, como se fosse um grampeador de papel, só que o grampo era mais largo e se dobrava ao meio) e suturou a ferida. Ele havia aprendido com o Dr. Jacobson e tinha todos os apetrechos para essas emergências. Poucos dias depois seu Altino já estava perfeito, prontinho para outra.
E o dedo do seu Quindô? Não há quem tenha entrado no laboratório da farmácia de Campo Limpo que não saiba da história do dedo do seu Quindô. E não há criança daquela época que não tenha morrido de medo de olhar para ele. Foi o seguinte: seu Quindô, de nome verdadeiro Tomaz de Aquino Pinto Balduíno, piauiense da gema e que foi para Campo Limpo no início da cidade, tinha uma máquina de arroz na esquina da avenida de baixo com a rua que passa ao lado de onde é hoje a igreja dos pentecostes. Um dia seu Quindô vacilou e meteu a mão num buraco da máquina que não podia. Ela engoliu a sua mão e deixou dois dedos esbugalhados, praticamente decepados. Correram com ele para a farmácia e não tinha outra saída, a não ser terminar de arrancar os dedos dependurados e fazer a sutura ali mesmo, já que não tinha médico. A operação foi feita com sucesso e os dedos arrancados foram colocados em um vidro com álcool e conservados por muitos anos em uma prateleira, perto de onde meu pai tinha uma coleção de cobras em recipientes semelhantes. Era o pavor da criançada. Parecia que estavam vendo assombração.
Antigamente era muito comum uma inflamação que dava no dedo das pessoas, começando pelo canto da unha, que fazia o dedo virar um mundo de grande e de dor, latejando sem parar. Era uma bactéria que se alojava ali e que gerava um quadro denominado panariz. Quase não se vê mais isso hoje em dia, mas naquele tempo era muito comum. E a solução era abrir e tirar o pus. O ritual consistia em colocar um pano no rosto do paciente para ele não ficar olhando a operação e desmaiar. A anestesia normalmente não pegava, devido a inflamação, e tudo era feito meio na marra. O cabra suava frio, amarelava, gemia, gritava. Havia alguns que desmaiavam mesmo ou tinham que baixar a cabeça entre as pernas para o sangue circular pelo cérebro e poderem voltar a ver as coisas sem embaralhar a vista. Feito o corte e retirado o pus, era então esterilizado um dreno de borracha (normalmente um pedaço de balão de aniversário), que era colocado lá dentro para não fechar e voltar a ficar como antes. Esta borracha tinha que ser trocada por uns três a quatro dias seguidos, tudo sem anestesia. Era um sufoco danado. Vi muito machão pedir penico com este tal de panariz.
Na farmácia a gente via muitos acontecimentos tristes, às vezes envolvendo amigos nossos e até parentes. Recordo-me com mais tristeza das queimaduras. Às vezes chegavam pessoas muito queimadas, que eram deitadas na mesa de cirurgia que meu pai tinha no laboratório e, então, recebiam a aplicação de uma pomada amarela, refrescante e anti-inflamatória. Lembro-me de alguns casos muito tristes. Era comum os donos de máquinas de arroz colocarem fogo nos montes de palha resultantes do beneficiamento daquele cereal. E era comum também a criançada ir brincar nestas palhas, sem saber que tinha fogo por baixo. Vez por outra a palha nova recobria a velha, o garoto não percebia e enfiava o pé no braseiro. Muitas vezes caíam e queimavam outras partes do corpo. Era doloroso ver estas crianças queimadas chegarem chorando na farmácia. Outro tipo de queimadura, muito comum também, era com velas ou com lamparinas a querosene. Como não tinha energia elétrica, todo mundo usava lamparina ou lampião a querosene e vez por outra acontecia um desastre. O mais triste de todos, de que me lembro, foi com uma filha do seu Neném Mumbuca, de nome Iridan. A garota, de uns cinco para sete anos, brincava de casinha com outra amiga e colocaram uma vela acesa no chão. O vestido rodado da criança encostou-se na vela e pegou fogo, queimando o corpinho dela todo. Lembro-me de meu pai passando a pomada amarela pelo corpo inteiro da criança. Que sofrimento! Levaram-na logo em seguida para o hospital de Iporá, mas a coitadinha não resistiu e faleceu, poucos dias depois.
Fatos inusitados da época da farmácia popular
Meu pai conta que quando ainda trabalhava com o Dr.Jacobson, tinha um remédio estrangeiro caro, muito famoso entre os homens mais abastados de Baliza, que era o melhor fortificante e afrodisíaco da época e que só era conseguido quando o ilustre farmacêutico viajava para fora, geralmente para São Paulo. Era um ”pó milagroso”, importado da Inglaterra, e que era embalado em porções homeopáticas para serem tomadas em horários religiosamente pré-determinados. O Alfredo Rocha, rico comprador de diamantes lá de Baliza, era um dos fregueses certos deste medicamento e encomendava sempre. Vez por outra era preciso “mandar buscar fora” para atender o seu Alfredo. No entanto, só meu pai e o Dr. Jacobson conheciam a real origem deste santo remédio. Era, simplesmente, o pó da entrecasca do arroz beneficiado em máquinas, ou farelo de arroz, misturado com um açúcar de milho, de nome dextrosol. Realmente é no pó da entrecasca que se concentra a vitamina do arroz, o Dr. Jacobson sabia disso. Mas se dissesse que era um produto preparado ali mesmo, não surtiria efeito e ninguém iria querer. Importado, virava uma bomba de efeito certo e imediato.
Meu pai me contou muitas outras histórias do seu tempo de farmácia, algumas gozadas, outras tristes, mas que mostram como eram aqueles tempos. Uma vez, quando tinha farmácia em Bom Jardim, meu pai teve que acompanhar o Raimundo Macaúba, vulgo Raimundão, a Goiânia para levar um filho doente. Dez dias depois, com o garoto já curado, estavam no aeroporto para retornar, quando foram fazer um lanche. Tinha uns bolinhos que vinham em forminhas de papel e o Raimundão só se deu conta disto depois que havia comido uma meia dúzia deles, do jeito que lhe entregaram. Aí, quando viu meu pai jogar o papel fora, ficou preocupado e, lá pelas tantas, não se agüentando mais, virou para o meu pai e disse: “seu Oscáli, eu cumi o papéli, será qui faiz máli? Tá me dano uma coisa runha!”. Esta história ficou famosa entre a gente e sempre tem um de nós se lembrando dela, principalmente quando alguém está com o estômago ruim. Quando encontro meu pai, só o chamo de seu Oscáli, lembrando deste fato.
Os medicamentos estrangeiros eram os que resolviam os problemas, na crença do pessoal daquela época. Talvez tivessem certa razão, porque as fábricas de remédios aqui no Brasil eram poucas e precárias ainda. Os remédios nacionais eram bastante desacreditados. Então, era preciso “importar” quase tudo. Tinha, por exemplo, dois produtos muito consumidos, que eram o Le Roy (Le Roá, em francês, que quando pronunciado assim fazia até o remédio ficar mais eficiente; ou Lerrói, no jargão popular, logicamente mais fraco) e a Aguardente Alemã, ambos laxantes, que vinham em frascos de 30ml, importados por um laboratório de São Paulo. Este mesmo laboratório vendia umas embalagens de cinco litros dos mesmos produtos, porém fabricados no Brasil. Forneciam, também, uns rótulos com os respectivos nomes. Eram, então, reembalados em frascos de 30ml e envoltos, artesanalmente, em papel celofane colorido, transformando-se em produtos importados da França e da Alemanha, muito mais eficientes que os nacionais e, portanto, muito mais caros.
Havia uma injeção grande, de uns 20ml, muito eficiente na época, chamada Calcium Sandoz, francesa, aplicada na veia e que levantava até defunto da cova. Havia outro com a mesma fórmula, mesma composição, mesmo efeito, denominada Gluconato de Cálcio, fabricada no Brasil. Mas não havia cristão que quisesse tomar o produto nacional, apesar de ser muito mais barato e ter a mesma eficiência. Aliás, se era mais barato era porque não prestava, na opinião do povo. A solução foi comprar quantidades iguais dos dois. Aplicava-se uma ampola da “estrangeira”, colocava-se o frasco na água para sair o rótulo, que depois era reaplicado na nacional, para “estrangeirá-la”. Aí o remédio ficava eficientíssimo.