Professor Moizeis Alexandre Gomis conta mais… Aqui, outro capítulo do livro O CONTO QUE O POVO DIZ E EU CONTO POR MENOS DE UM CONTO. Neste, ele fala daquele que se livrou de ter sido lesado pelo Coronel Quinca Paes. Vamos à leitura:
O BAIANO QUE FEZ O CORONEL DE BOBO
Toda pessoa que já estudou a História do Brasil, tem conhecimento da nomenclatura República Velha, República Oligárquica e República dos Coronéis, que são sinônimos do período histórico que compreende de 1889 até 1930. Época que ficou conhecida também como a da “política dos governadores” e do “café com leite”, em razão de São Paulo e Minas Gerais se revezarem na indicação da maioria dos presidentes da República que governaram o país nesse período. Mas esse período ficou mais conhecido mesmo como a República dos Coronéis, visto que esses mandatários oligárquicos, com patentes concedidas pelo governo, formavam a base da estrutura político-eleitoral e, como cabos eleitorais, determinavam os resultados das eleições, elegendo o presidente da República, governadores, senadores, deputados e até os prefeitos que eles queriam no poder.
Regime aristocrático esse que era sustentado majoritariamente pelos grandes latifundiários, que só foi derrubado com a revolução tenentista, liderada por Getúlio Vargas, em 1930, que focou conhecida por Revolução de 30, quando então os coronéis forma depostos do poder. Quem não ouviu ainda, uma vez ou outra, causos contados por seu pai ou avô, relacionados com algum coronel dessa época? Desde a minha infância sempre ouvia “os mais velhos” contarem, até nas paradas para merenda na capina da roça, sobre alguma proeza ou maldade que esses temíveis fazendeiros, cercados de jagunços, faziam. Aliás, no conto do capítulo seis, já se fez referências sobre os dois irmãos e poderosos coronéis Quinca Paes e José Pais, que mandavam e desmandavam na região que hoje constituem os territórios de Iporá e municípios vizinhos, nas três primeiras décadas do século XX. A história que você vai conhecer, ou melhor, ler e, talvez, recordar coisas que também já ouviu, tem a ver com um baiano que se fez passar por bobo, pra que o coronel Quinca Paes não lhe “passasse a perna”, como fazia com os andarilhos que trabalhava em sua fazenda.
José Cardoso era um moço trabalhador e cheio de sonhos. Sempre viveu na sua cidade natal, Carinhanha, na margem esquerda do Rio São Francisco, onde cresceu vendo e convivendo com as embarcações subindo e descendo o Velho Chico e ostentando, nas proas, suas assustadoras carrancas. O que mais o fascinava, no entanto, era o Barco a Vapor, principalmente à noite, passando lá no meio do rio todo iluminado. Sentado na praça, ficava olhado a embarcação aparecer lá na curva, subindo ou descendo, enquanto ouvia as animadas cantigas de passageiros no convés embaladas ao som de sanfonas, pandeiros e triângulos. Às vezes, ia até o porto, ver o embarque e desembarque de passageiros e cargas. Momentos em que sonhava um dia embarcar também e conhecer outros pedaços de mundo. Mas, como era pobre, filho caçula da velha mãe viúva, seus sonhos não passavam de “sonhos sonhados acordado”. Pois havia jurado para si mesmo que não deixaria a ribeirinha cidade natal enquanto sua velha mãe fosse viva.
Certa manhã, rapaz já feito com mais de vinte anos e idade, em um Dia de Finados, enquanto vinha do cemitério, onde fora acender uma vela para sua querida mãezinha que havia morrido há poucos meses e depositar uma coroa de flores na cruz da sepultura dela, José Cardoso se lembrou de seu juramento, agora cumprido. Então resumiu suas economias, comprou um cavalo bom e bem arreado, despediu dos parentes e amigos e enfiou a cara no mundo. A estrela Dalva brilhava piscando, quando ele montou seu alazão e partiu com a ideia de vir para Goiás garimpar nos garimpos de diamantes da Baliza ou de Torixoreu, no Mato Grosso. Quando o dia amanheceu, ele já estava no alto da serra, onde parou o cavalo, virou-o para trás, olhou, por algum tempo, o Velho Chico lá embaixo no vale correndo para o norte como uma estrada luminosa refletindo a luz do sol de uma manhã fria de novembro sem chuva. Contou as curvas da estrada que serpenteava espigão acima até chegar onde estava parado. Tirou o chapéu da cabeça e, com os olhos embaçados de lágrimas e um nó na garganta, ergueu o braço e o abanou dando um carinhoso adeus à sua querida Carinhanha que o viu nascer e crescer e ao Velho Chico. Deu um toque na rédea do castanho, indicando-lhe a direção do caminho e uma carinhosa cutucada de espora, enfiou o chapéu de novo na cabeça e descambou a serra com os olhos perdidos na imensidão do horizonte, para o lado de Minas Gerais. Cortando cerradão, matas, capinas, subindo e descendo serras, atravessando córregos e rios cheios, enfrentado pé d’água debaixo de sua capa de feltro, atravessou as terras mineiras e entrou em Goiás, pela ponte da estrada de ferro, vindo parar no Comércio Velho, onde garimpou alguns dias. Mas seu plano era chegar ao garimpo da Baliza, no Araguaia, mesmo a pé, depois que seu cavalo desapareceu na fazenda do Quinca Paes, onde pedira pouso e acabou ficando, convencido pelo coronel. No princípio, ele gostoude trabalhar na fazenda, depois, por “circunstâncias”, continuou ali por muito tempo, mas sempre dizendo que ia continuar a viagem, quando terminasse as empreitadas que pegava do coronel.
Quase dois anos já havia se passado e o Zé Cardoso ou Zé Baiano, como era chamado pelos goianos, continuava trabalhando para o coronel fazendo uma empreitada após a outra. O patrão, bajulando-o com ostensivos elogios segurava-o com novas empreitas e a promessa de que, quando terminasse, lhe pagaria todo o combinado e ele, então, poderia seguir sua viagem para o garimpo com “uma boa grana”. O baiano, que só tinha o jeito de bobo (por conveniência), na verdade, era mesmo um ladino, fazendo-se passar por boçal. Continuou dando uma de “bocó”, analfabeto e serviçal fiel e simplório do coronel, levando todos a crer que ele era um coitado Zé ninguém idiota, que fazia qualquer serviço que lhe mandasse, apenas não servia para a “quebra de milho”, pois tinha pavor até de matar um capado e dava “branqueira” quando via sangue (tudo dissimulação). Como já tinha certeza de que seu cavalo havia sido frutado pelos capangas, a mando do coronel, quando pedira pouso na fazenda, fingindo amizade com alguns jagunços, foi arrancando deles as histórias acontecidas a respeito do que acontecia com os desventurados transeuntes que trabalhavam ali.
Primeiro ficou sabendo por que um canavial de meio alqueire de chão era infestado de marimbondos “cassumungas”, onde ninguém se atrevia cortar sequer uma cana. Pois se alguém se aproximasse do canavial, estando ainda longe da cerca, uma nuvem dos insetos picantes e peçonhentos atacava impiedosamente. Até cavaleiros que passassem distraídos por perto não escapavam da praga infernal que os fazia correr em disparada. Nem o gado beirava a lavoura de cana. Certa feita, quando campeava algumas vacas com um dos jagunços e ele cortou volta para não passar perto do canavial, Zé Baiano quis saber como aquele enxame de milhões e milhões de marimbondos bravos havia tomado conta de ponta a ponta da lavoura de cana e permanecia ali há muito tempo. Então o peão, dizendo que só ia explicar o que tinha acontecido porque o Zé Baiano “já fazia parte dos peões de confiança” do coronel soltou a lábrea contando a horrorosa história.
“Certo dia”, conta paciencioso o jagunço, enquanto ia à frente pela trilha do gado no meio da invernada, “chegou aqui a pé um conterrâneo seu, que ia para o garimpo do Araguaia, de nome Adelino Fortunato – que de afortunado não teve nada – que ficou conhecido aqui pra nós de Ligeirinho, por ser miudinho, muito trabalhador e esperto em tudo o que ia fazer”. “Seu Quinca convenceu o rapaz a ficar na fazenda e contratou ele para fazer meio alqueire de roça e o entregar todo formado com cana de açúcar”. “Fez para ele uma ‘proposta irrecusável’ e o Ligeirinho ficou”. “Roçou e derrubou a mata, queimou e desencoivarou a roça, deixando ela no ponto de ser plantada”. “Quando a chuva chegou ele plantou as olhaduras de canas e continuou zelando do canavial”. “Morava lá mesmo em um rancho que fez na beira do córrego no fundo da roça e seu Quinca fornecia o de comer para ele com fartura, pois é assim que ele trata todo mundo em sua fazenda, é como você vê, a mesa está sempre cheia e com ele e a patroa não tem ridiqueza”. “Quando o canavial já estava formado, com as canas já maduras e pendoando, boas para a moagem, uma beleza de canavial, o Ligeirinho chamou seu Quinca para acertar o pagamento da empreitada, conforme o prazo e o preço combinados”.
“No dia do acerto, seu Quinca foi com o Tonhão Canhoto, ele já sumiu daqui, sujeito daqueles que parecem que não têm coração, que era da confiança do coronel”. “Quando chegou lá de manhã, o rapaz estava perto do rancho capinando as últimas moitas de mato, para entregar a roça limpinha”. “O coronel chegou de mansinho sem ele perceber e, quando estava perto, chamou o Ligeirinho e disse: ‘eu vim para nós acertar e despachar você para ir embora’”. “O ligeirinho cumprimentou o coronel e chamou eles para o rancho. Pôs a enxada sobre o ombro e foi andando na frente”. “Então o coronel passou para trás do Tonhão Canhoto, fazendo sinal com a cabeça para ele atirar”. O Ligeirinho nem viu como morreu: a bala da carabina pegou na nuca e vazou na boca, caindo morto ali mesmo!” “Depois chamou outros peões da confiança dele e mandou enterrar o moço lá no fundo da roça, onde tem aquela touceira de pés de banana”. “Isso aconteceu de manhã e, logo que acabaram de enterrar o homem e plantar a muda de bananeira, uma nuvem de marimbondos invadiu o canavial e nunca mais saiu e ninguém consegue tirar eles de lá, nem mesmo reza braba de benzedor famoso acostumado a mandar cobras venenosas em bora dos pastos”. Zé Baiano chega arrepiou todo e o coração parecia que ia sair pela boca quando ouviu aquela história, mas continuava fazendo de conta que não estava nem aí e que tudo era anormal.
Passado algum tempo, chegou à fazenda um comprador de gado. Naquele dia os peões estavam limpando o rego d’água da fazenda, inclusive o Zé Baiano. O coronel recebeu o boiadeiro e depois de um dedo de prosa com ele, convidou-o para almoçar, indo na frente. Quando o convidado chegou à porta do salão, onde se descia pela escada que dava acesso à espaçosa cozinha e viu lá em baixo a enorme mesa que comportava mais de vinte pessoas, quase toda ocupada por peões com as calças arregaçadas e todos sujos de barro do serviço de limpeza do rego d’água, voltou para a sala e se sentou. Depois do almoço, Quinca Paes perguntou ao boiadeiro porque havia desistido de almoçar. Então ele respondeu que não sentaria à mesa com aqueles peões sujos de lama. Aí o coronel lhe disse: “Pois fique você sabendo que esses peões que você está chamando de lameados, são muito importantes para mim, eles que trabalham para por a comida na minha mesa”.
Em vez de tratar do negócio da venda de gado com o boiadeiro, mandou os capangas pegá-lo e, depois de tê-lo desarmado de seu revolver e a guaiaca cheia de balas, tiraram-lhe a camisa, amarraram-no em um tronco fincado no meio do curral, onde se prendia vaca no laço, e ordenou que lhe chegassem a pinhola. Depois que os capangas deixaram o moço coberto de verdugos, o próprio coronel ainda riscou de leve as costas dele com uma navalha e passou-lhe caldo de pimenta malagueta. Serviço terminado, o coronel Quinca mandou um jagunço soltá-lo e vestir-lhe a camisa. O pobre infeliz, todo ensanguentado, gemendo de dor e desarmando, montou em seu cavalo e desapareceu diante dos olhares sínicos e das gargalhadas sádicas e debochadas dos capangas que se divertiram com a “lição de moral” que o patrão acabara de dar ao boiadeiro metido a bacana, porque teve escrúpulos de sentar com eles à mesa para comer. Zé Baiano, que assistia tudo, também fingia estar se divertindo e se deleitando com o espetáculo cruel. Mas, a cada barbaridade que presenciava ou ficava sabendo, ia arquitentando o seu astuto plano de como se livrar do coronel sem ficar no prejuízo, recebendo tudo o que lhe pertencia por direito pelos quase três anos de trabalho, dos quais ainda não havia recebido nem um tostão.
Certa feita, na sala onde funcionava o escritório do coronel, o Cartório do Registro Civil e Sessão Eleitoral, pois era Juiz de Paz e cabo eleitoral da situação, Zé Baiano pegou um livro e ficou folheando-o de “cabeça para baixo”. Então o coronel, rindo e debochando dele tomou o livro de sua mão e o pôs na posição certa, dizendo-lhe: “É assim que se pega em um livro, como você é orelhudo Baiano…”! Ele, meio sem jeito, disse-lhe: “O sinhô me disculpa, pois eu nunca fui na escola”. E assim foi levando a vida dissimulada, falando como um “bocó”, dando uma de “rudo” que tinha dificuldade em aprender as coisas, errava na hora de fazer contas de cabeça, deixando o coronel pensar que ele era mais um que iria ser alvo da carabina de seu jagunço no dia do acerto das empreitadas.
Passados três anos, após a última empreita concluída, Zé Baiano, em uma tarde de domingo, chamou o patrão para o acerto geral, dizendo-lhe que agora ia seguir viagem para o garimpo. O coronel levou-o até o escritório, escreve um bilhete, dobrou e entregou-lhe com dois contos réis. Depois disse para o Zé Baiano passar no outro dia cedo na fazenda do coronel José Paes, quando fosse embora, apresentasse a ele o bilhete, onde pedia para lhe fazer o restante do pagamento e depois eles se acertariam sobre o empréstimo. Zé Baiano recebeu o dinheiro e o bilhete, agradeceu o patrão e “elogiou-o” por “sua bondade” e foi para o alojamento onde dormia. Ao ler o bilhete, lá estava escrito: “Compadre Zé Paes, quando o Baiano contar a história que eu mandei ele falar para você, pega os dois contos de réis que estão com ele e mando seus homens fazer o serviço que já sabe qual é; depois vou aí buscar meu dinheiro”. Algum tempo depois, voltou ao escritório e, enquanto todos jantavam, pegou uma folha de papel do mesmo bloco que o coronel usara e, com a mesma pena e tinteiro, escreveu outro bilhete com caligrafia e assinatura semelhantes, pois em sua terra terminara o Ensino Primário com menção honrosa e sabia ler e escrever muito bem, além de dominar com facilidade a aritmética, que usou para calcular o valor dos três anos de trabalho para o coronel. Guardou o bilhete e foi dormir.
No outro dia cedo, na espaçosa mesa da cozinha, tomou o café reforçado com leite, bolo, pão de queijo, peta e recebeu da patroa um pacote de paçoca de carne de vaca empacotada em palha de espigas milho, com a recomendação: “Isto aqui, Zé Baiano, é para você matular na estrada, quando der a fome”. Ele despediu de todos e pegou a estrada para a fazenda do coronel Zé Paes. No caminho rasgou o bilhete do patrão e jogou-o no Ribeirão Santo Antônio quando o atravessava em uma pinguela, abaixo da barra da Jacuba. Chegou à fazenda na hora do almoço. Apresentou-se ao irmão do Quinca Paes e mostrou-lhe o bilhete, que dizia: “Compadre Zé Paes, peço para você entregar para o Zé Baiano tudo o que segue apontado abaixo, pois eu estou enviando ele a Vila Boa para uma missão importante”. “Entrega a ele quinze contos de réis que são para pagar impostos ao governo e mais quinze para o caixa da campanha da nossa próxima eleição para governador, senadores e deputados. Dá também uma mula boa arreada, um revolver 44, uma carabina de dez tiros e bastante munição, além de matula para ele se alimentar na estrada durante os quatro dias de viagem até chegar à capital”. “Na segunda-feira estou esperando um boiadeiro lá de Rio Verde, com quem acertei a vendadeuma ternada de rezeseno próximo domingo irei aí para pagar o empréstimo”. O coronel leu o bilhete e ainda mofou da cara do Baiano: “É… Você acabou caindo na graça do compadre Quinca, pois para confiar um tanto de dinheiro desses, você só pode ser um negro de confiança mesmo dele! Entrou lá no quarto e voltou com o dinheiro contado, a carabina, o revolver e tudo o que “foi solicitado” e entregou ao Zé Baiano. Por fim, mandou um de seus serviçais pegarem a mula de nome “anta velhaca”, de cor castanho claro, arriar e entregá-la ao Baiano.
Após o almoço e com o “pandu” cheio até na tampa, Zé Baiano picou a espora na mula em direção a Vila Boa. Mas, quando perdeu-se da vista da fazenda, entrou em uma mata fechada, esperou anoitecer e tomou o rumo do Caiapó, atravessou o rio, pegou a estrada tropeira de Rio Bonito (Caiapônia) e quando o dia amanheceu já havia cortado dez léguas de chão. Escondeu-se na beira de um capão na cabeceira de uma vereda, prendeu a mula com um laço de doze braças e, enquanto ela pastava o capim da várzea, armou sua rede em duas árvores e foi tirar uma boa soneca até que o sol desaparecesse, para que pudesse prosseguir viagem como um zumbi a vagar solitário em volto pelo silêncio e a escuridão da noite de lua nova.
Assim, passou pela cidade de Rio Bonito por volta das duas horas da madrugada, quando não havia uma só alma vivente nas ruas e nem iluminação pública. Em Rio Verde já deu as caras durante o dia e até fez uma pequena parada, pois os coronéis e fazendeiros daquela região eram rivais políticos da situação que governava o Estado, representada pelas famílias Caiado e Jardim, que tinha como chefe da oposição no sudoeste goiano o médico Dr. Pedro Ludovico Teixeira, residente naquela cidade. Por isso, jagunços dos Paes não ousariam ir além de Montividiu. Quando chegou domingo, o sétimo dia depois que havia ludibriado os dois irmãos coronéis, Zé Baiano já cavalgava em terras mineiras, depois de ter passado por Itumbiara e atravessado a ponte Afonso Pena, admirando sua estrutura metálica suspensa sopre o Rio Paranaíba.
Enquanto isso, naquele dia, o velho Quinca resolveu, depois do almoço, ir visitar o compadre Zé Paes e pegar de volta os dois contos réis, esperando que o “negrinho baiano” já estivesse dando comida para a terra. Depois de baterem um bom papo, Quica Paes disse para o irmão: “Pois é, compadre, agora você me passa aquela importância que estava com o Baiano, para eu voltar para casa”. “De que importância você está falando, compadre Quinca?” Perguntou Zé Paes, estranhando a conversa do irmão. “Aquela do serviço que eu pedi para você fazer com o Zé Baiano, conforme estava escrito no bilhete que eu mandei ele lhe entregar”! Explicou o velho Quinca. “Uai, compadre, eu fiz tudo o que você me pediu, do jeito que estava escrito…!” Foi até ao quarto, voltou e mostrou-lhe o bilhete. O coronel, verde de raiva, praguejado e xingando tudo quanto era nome feio, esbravejou: “Negrinho desgraçado, me fez de bobo, fingindo que não sabia ler e me passou a perna!”. “Mas ele me paga…!”
Montou no seu cavalo e saiu disparado que nem um furacão. Chegando à sua fazenda, organizou quatro duplas de jagunços bem armados e botou eles no encalço do Baiano “excomungado”. Uma dupla foi para Vila Boa, outra para o lado de Paraúna, a terceira desceu em direção ao Registro do Araguaia e a última tomou o rumo de Rio Bonito. Todos receberam a mesma ordem: “Tragam o ‘maldito’ vivo, pois eu quero ensinar a ele quem é o coronel Quinca Paes…!” Depois de uma semana, tendo eles ido até além das localidades indicadas, voltaram “descabreados”, dando todos o mesmo relatório: “Patrão, por donde a gente andou, não houve uma só pessoa que tivesse visto o dito cujo, ninguém soube dar nenhuma informação sobre o excomungado do Zé Baiano”. “Nem na capital souberam dar alguma notícia sobre ele!” O coronel, resmungando e amaldiçoando com tudo quanto era praga, só teve uma saída para resolver o problema: o jeito foi vender uma boa ternada de bois e vacas para o compadre Zé Paes, como pagamento do “empréstimo compulsório” que o ladino do Zé Baiano o fizera contrair!
Os tempos mudaram, os coronéis viraram história, aliás, mais lenda do que história mesmo e os domínios de Quinca Paes e Zé Paes hoje estão retalhados em centenas de fazendas, sítios e chácaras. Mais de meio século depois, em uma tarde tranquila, certo viajante trigueiro, vendedor representante de um grande armazém atacadista de Uberlândia, se achava hospedado no Hotel São Jorge, na Praça do Trabalhador (endereço da atual Caixa Econômica). Ele e outros hóspedes, também sentados no mesmo banco comprido encostado à parede, sobre a calçada em frente o hotel, conversavam sobre o tal de Quinca Paes, enquanto um garoto de catorze anos engraxava seus sapatos. Cada um contou a história que sabia das proezas e maldades do lendário coronel. O vendedor, que ouvia tudo com atenção e fazendo algumas perguntas, por fim, também entrou na conversa e relatou empolgado e com orgulho a façanha heroica do Zé Baiano, que havia pregado uma peça no Quinca Paes e feito ele de bobo! Mas, ao terminar sua história, fez questão de explicar que o Zé Baiano não “passou a perna” no coronel, apenas recebeu o que era justo pelos três anos de trabalho duro em sua fazenda, e acrescentou: “O José Cardoso, meu pai, sempre foi um homem honesto e, em Vitória da Conquista, onde nos criou, sempre trabalhou de pedreiro para dar sustento à família e estudos para os filhos, além de boa educação de berço!” “Hoje está aposentado vivendo tranquilo em sua casa na beira do Velho Chico, em Carinhanha, onde, às vezes, fica sentado na varanda vendo as embarcações passarem, alimentando as lembranças da dura vida que viveu no Goiás dos tempos dos coronéis”. “Ainda hoje ele fica observando, tomado de nostalgia, o Vapor Benjamim Guimarães passar subindo e descendo o rio, barco que fora “construído em 1913, nos estados Unidos e, após ter navegado pelo Rio Mississipi, foi comprado por empresários brasileiros para transporte de cargas e passageiro na Bacia Amazônica, sendo posteriormente transferido para o Rio São Francisco, por volta de 1920”.
{1} Atualmente o Vapor Benjamim Guimarães, depois de restaurado, voltou a navegar movido a lenha, como atração turística no alto São Francisco.