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A incapacidade de dizer que me move

Lutar com palavras/ é a luta mais vã,
Entanto lutamos/ mal rompe a manhã(…)
… lúcido e frio,/ apareço e tento
apanhar algumas/ para o meu sustento
num dia de vida. (Carlos Drummond de Andrade)

Eu registro a minha incapacidade de dizer como se fizesse prosa, como se escrevesse poemas. São rebus, garatujas, ranhuras ingênuas e desesperadas, como pinturas rupestres no paredão rochoso do tempo. No fim de tudo, é só minha incapacidade de dizer. Esse é o drama ou a virtude de quem procura a expressão como um modo de reafirmar a necessidade de não estar sozinho no mundo. Dizer é não estar só. Dizer implica reconhecer o outro, um outro para onde o desejo e a voz seguem de braços abertos, com um endereço certo de identificação à tiracolo. O endereço sempre descreve um mapa de semelhanças ou pontos obscuros que fazem palpitar as inseguranças primárias. Por isso, os braços abertos não parecem sempre abertos e o ser titubeia aqui e acolá dando sinais da precariedade da expressão. Dizer é uma necessidade de existência, de se separar do outro para ir em busca daquilo de que se separou. Fazer rebus, garatujas, ranhuras constitui essa busca, é forma de me dizer, é me dar um mundo, é estar em companhia. Poesia e prosa são o vitral móvel onde me arrasto juntando peças, como uma aranha a compor sua inevitável teia, modo possível de ter os outros, de sobreviver.

Meu dizer sempre fracassa, fatalmente, às vezes porque o outro acredita e se identifica, e isso tem um preço: a coisa com que o outro se identifica é mais mistério do que coisa, é da ordem de coisa que se configura e não se configura ao mesmo tempo, que não se sustenta na temporalidade senão como engano, rastro cheio de esquecimentos, afinal o outro é um eu também. Esses rastros têm mais a ver com as tesselas de um caleidoscópio furtivo, cuja mandala se modifica ao menor movimento, luzes de uma nebulosa que nunca existiu, com a qual formamos imagens e sonhamos com a verdade inventada, inventada, inventada... Tão inventada que parece natural. Como dizia o gênio atormentado de Nietzsche, “o intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce”. É isso: dizer é disfarçar, por isso a vontade de dizer é tomada pelas forças da incapacidade: disfarçar o quê e de quem? Nunca se sabe, principalmente quando se sabe. O olho mágico por onde me vejo só oferece o que já está dado. O “quê” nunca está na direção da procura a que me volto. Ou aceito o batalhão de palavras, metáforas, signos, sentidos ou não encontro o eu e o outro que tanto busco. Se encontro já sou só busca e se não sou, não existo. Dizer é viver e viver é buscar. Transformar impulsos nervosos, reações bioquímicas em palavras já é se perder da biologia de si, da materialidade do mundo. Assim, a verdade de tudo vira hipótese de tudo, espelho miúdo para saciar a nossa vontade de ser. Só isso é possível: compor com o que já se tem. Compor com o que não se tem é da ordem do impossível, por isso só pode ser disfarce, fantasia, engano. É como esperar que o gato de Schrödinger esteja vivo apesar das hipóteses e exista apesar de Schrödinger. Viver é dessa vontade, dizer também.   

Escrever prosa, fazer poesia, como marca da incapacidade de dizer, curiosamente produz dizer. E isso me dá um palco para viver, para encontrar os outros e comungar a existência tão frágil e poderosa quanto uma teia de aranha. Como a teia de aranha, a vida dá o que pode nos limites do que ela é. Por isso dizer tem limites, realça incapacidades, por isso dizer é uma luta falível e interminável. Escrever prosa e poesia me compõe, compõe o mundo possível para mim. Se não o faço me perco sombriamente na imensidão caótica das coisas em que os nomes se colam como emblemas e descolam em segundos, inviabilizando o vislumbre necessário do meu mundo, impossibilitando que os rastros que me compõem se imprimam no paredão rochoso do tempo, criando o painel que se escreve e me inscreve naquilo que me constitui: amor, solidariedade, alegria, esperança e vontade de ser cada vez mais, bólido de luz fulgurante a compor a constelação humana.  Ando muito por fronteiras, a sensação de inexistência quase sempre me espreita, por isso insisto em dizer. Há braços!

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdades e mentiras no sentido extra-moral (Obras incompletas). São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Alan Oliveira Machado é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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