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A língua boa é a que se enxerga no espelho

Por Alan Oliveira Machado

A língua que passeia nas ruas não é a que dorme no colchão de penas das gramáticas. As gramáticas são só um retrato antigo e mal acabado, pintado por um daltônico qualquer. Há colorido de jardim na língua das ruas, multiplicidade de flores, insetos verbais e caminhos diversos, que se cruzam o tempo todo nas ondas sonoras. O alarido sonoro enche bares, igrejas, domicílios humildes e feiras de todo tamanho com sua riqueza. Aqui a pobreza e o espírito de colonizador estão nos cartórios de registros e notas, nos fóruns, tribunais e livros bolorentos, cheirando a naftalina, onde figuras esquipáticas arrancam antiguidades do seu sono emplumado e fazem ecoar bocejos de ordem para a imitação.

Alguns vão me perguntar, desconfiados, se por acaso existe língua sem gramática, já que poeticamente pintei esse retrato negativo da gramática. Se fosse pensar apenas 
do ponto de vista etimológico, diria que as línguas naturalmente não têm gramática. Isso porque o termo gramática, segundo o Oxford Languages, vem do grego “grammatikós, derivado de grámma ‘escrito’, ‘letra’ e este de gráphein ‘escrever’”. Então, gramática é a arte de gravar letras e palavras seja na pedra, no barro, na madeira, no papiro, no pergaminho, ou no papel, não importa. As línguas naturais, aquelas que se aprendem antes de ir para a escola, são orais, preexistem aos recursos gráficos e não precisam deles para existirem sincronicamente. Se as línguas de fato existem antes da escrita, o que é a escrita? É uma tentativa precária e temporalmente restrita de registrar a língua, porque uma língua por si mesma é heterogênea, multiforme, plural. A língua vai ao infinito na sua sincronicidade e arrasta indiferente as cicatrizes diacrônicas, como um bólido complexo. Isso é suficiente para olhar com certa tristeza para aqueles que confundem língua com escrita e cegamente defendem a escrita e certas receitas de escrita, aquilo que chamam de gramática, como se fosse exclusivamente a língua.

Gramática, para os linguistas e pesquisadores das línguas como fenômeno social, é o sistema, o conjunto de regras observáveis no uso, que fazem com que um léxico, ou seja, um conjunto de signos, palavras, se organize linearmente, de forma compreensível, para um determinado grupo social. As regras são permutáveis, diversificadas, móveis ao longo do tempo, elas são, se assim posso dizer, o motor da “linguidade” da língua, o que a torna compreensível, portanto, social. Não acreditam nisso os que acham ser a língua aquele livro velho que guarda regras de certo e de errado, do que pode e do que não pode, como um manual de etiqueta de Danuza Leão. Esse livro, cheio de exemplos ideais, tirados de escritores clássicos, pouco representa a língua viva que circula de boca a boca no cotidiano, como o café quentinho sempre bem-vindo nas manhãs brasileiras. Se a gente for dar uma olhada mais de perto nele, vai perceber que há um abismo entre o que está registrado como língua em suas páginas e o que realmente circula nos usos diários dos brasileiros. Alguém já viu um brasileiro fazendo uso, tanto falado quanto escrito, da segunda pessoa do plural (vós) dos verbos por aí? Vós fizéreis, vós façais... E as colocações pronominais enclíticas ou mesoclíticas? Deixe-o, amo-te, dar-te-ei, fá-lo-á ...  Quem fala ou escreve isso hoje? Apenas lusitanos, gente nativa de Portugal. 

Aí está um ponto sobre o qual é preciso parar e pensar criticamente. Se lusitanos falam e escrevem desde criancinhas mais parecido com o que está nas gramáticas que temos no Brasil significa que esses livros de etiqueta que chamamos de gramaticas aqui, de certo modo espelham a forma de falar do cotidiano dos lusitanos. Significa, portanto, que os portugueses não são ridicularizados por falar e escrever naturalmente o português deles, pois há certo espelhamento entre a língua natural e os manuais que chamamos de gramática. O que não entra na minha cabeça é por que o português que falamos naturalmente tem como espelho um livro de normas que não espelha satisfatoriamente o que ele é.

Então vivemos essa esquizofrenia entre a nossa língua natural e as normas de etiqueta de uso, fundadas equivocadamente no certo e no errado imposto por esses livros que chamamos de gramáticas normativas do português, sem nunca nos perguntar: de qual português, meu chapa? Abraçamos esse resquício colonial e seguimos chicoteando aqueles que falam a nossa língua natural com o reio da língua natural do lusitanos, coisa que denota uma sujeição ideológica anacrônica e inadmissível. Aqui me lembro agora do romance A geração da utopia, de Pepetela, autor angolano, ou seja, escritor de um país também colonizado por Portugal, que inicia a referida narrativa do seguinte modo: Portanto, só os ciclos eram eternos. (Na prova oral de aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor, perguntou o professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português; então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como conclusão dum raciocínio? Assim mesmo, para pôr o examinando à vontade. Daí a raiva do autor que jurou um dia havia de escrever um livro iniciando por essa palavra. Promessa cumprida. Eis aí a resposta devida do colonizado ao colonizador, coisa que nos recusamos a fazer. Por aqui fazemos o pior: pegamos o chicote da língua lusitana e agredimos uns aos outros por usarmos a nossa língua natural, como bons capitães-do-mato. Há braços!

Alan Oliveira Machado é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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