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Com peso e leveza, viver é aos poucos

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“Mas uma coisa é certa: a contradição pesado-leve é a mais misteriosa e ambígua de todas as contradições”. (Milan Kundera in: A insustentável leveza do ser)

O peso das coisas resiste ao nosso gosto por flutuação, à nossa necessidade visceral de vagar como vento para uma completude. O peso das coisas nos puxa para o encontro com o que não queremos admitir, é peso de alguma coisa que as coisas escondem. Esse peso normalmente adia o nosso fim ou tragicamente o antecipa. Então ficamos ali, como aqueles balões de parques infantis, amarrados à alça de guia do carrinho roto de picolés ou presos à mão de um palhaço decadente, garantindo que aquela materialidade grosseira não nos prende, não nos pertence. Dizer materialidade grosseira é só mais uma forma de se defender do inevitável. O peso não deixa de ser peso porque a gente opta por flutuar e as coisas, embora pareçam óbvias, são um mistério grudado em nossa carne.

Para nossa sorte ou azar, o hoje das coisas muitas vezes vem como um depois, quando ou já nos despedaçamos ou já galgamos um degrau a mais na utopia. É que a coisa está do lado de fora. Está? A coisa está fora do nosso campo de captura talvez porque já nos capturou primeiro ou porque somos matéria de coisa também e ninguém quer encarar essa medusa indecifrável, ou quer? Enfrentá-la, olho no olho, é deixar de existir, é se transformar em coisa, só peso ou flutuação sem forma a que se agarrar. 

Acho que essas apreciações costumam não deixar saídas para aqueles que se dividem rigidamente entre o prazer e a realidade, entre o imaginário e o simbólico. É como se deixasse aos realistas a lição de que o mundo sempre vai mal e aos do mundo da fantasia, que eles não pertencem à encenação que fazem cotidianamente porque ignoram o peso das coisas. O certo é que essa separação talvez nem exista de fato. O que existe é a resistência a uma ou outra dessas supostas extremidades que comportam a vida, que comportam a sensação de existência. Negar o prazer ou o sofrimento como parte da vida impossibilita uma percepção satisfatória do que ela realmente é. No caso, tanto otimistas como pessimistas padecem do mesmo mal: a falsa completude que não se sustenta diante do acontecer cotidiano e o sofrimento não raro intolerável que advém da posição que ocupam em um dos polos, tornado em falação, mau humor e atos.

Mas nada disso é tragicamente ruim quando se entende que faz parte do todo da vida. O peso das coisas é o peso da vida. Essa gravidade segura aquilo que quer voar num desatino não porque não seja da vida, mas porque viver é aos poucos, com sabor e saber nem que seja no dia seguinte, no confronto das vontades com a experiência do vivido. É isso que torna o vivido vívido. Viver é reconhecer cicatrizes e aceitar, como um ourives diante da balança de precisão, o quantum de prazer e de desprazer, o valor da experiência completa, como a própria vida acontecendo. O bom da vida é que estamos vivos, o ruim muitas vezes é não enxergarmos o seu passo a passo como o ouro da existência. 

Essa talvez seja uma forma de falar do fora do sentido que participa como tijolo na nossa existência. A Coisa, como diria Lacan: “é o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética com ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário”. Esse fora está na vida como leveza ou peso, a depender de como se maneja, mas que, como peso, nos incomoda bem mais. Contra a angústia que esse fora do sentido produz temos quatro possibilidades: inventar respostas “infalíveis” boas ou ruins para o sentido da vida, como fazem os otimistas e os pessimistas; ter apenas perguntas sobre perguntas, num trilho infinito; olhá-la diretamente e se despedaçar ou simplesmente compreender todas essas possibilidades como o movimento da própria vida. 

Viver é um estar no tempo e no espaço, no redemoinho de seus eventos, fazendo castelinhos de areia na praia, foguetes espaciais cheios de ambição e de esperança. É também estar fazendo guerra ou comunhão; quem sabe viajando num livro, ou prostrado na cama de um hospital, abraçado a medos profundos... Pode ser também se pôr a observar formigas abrindo um caminho limpo no quintal, por onde seguem em fila com folhas nas costas... Viver é estar em cena, realizando e apreciando, como aquela criança com o rosto colado na vidraça observando uma abelha desesperada tentando vencer a transparência do vidro para ganhar o rumo de sua colmeia. Mesmo sozinha, sem pais e sem perspectiva de futuro aquela criança é vida no redemoinho. 

Viver, por fim, é uma infinidade inusitada de ocorrências, então é preciso saber apreciar de mansinho para não ser engolfado por um engodo ou agrilhoado por uma âncora. Sim, porque a gravidade que emprestamos a certos eventos da vida vira a âncora que nos prende em estações que empobrecem o nosso íntimo cheio de redemoinho, cheio de sedes e vontades. Viver é uma miríade de coisas, ao mesmo tempo e agora, que nos puxam e nos impulsionam a continuar a vagar no impossível com os passos possíveis. Há braços!

Referências
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

Alan Oliveira Machado é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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