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Cristianismo, família e fé

Texto de Alan Oliveira Machado

Eu sou ateu desde os quinze anos de idade e não necessariamente porque sou filho de comunista. Meu pai, embora leitor de Marx, militante coerente do materialismo comunista e defensor da justiça e da igualdade para todos, não achava que a religião era o ópio do povo, como dissera o jovem Marx em uma investida crítica ao pensamento de Hegel. Lembrando agora do contexto da frase acho que Marx tem mais razão do que meu pai nessa questão. Meu velho pai era espírita, leitor de Allan Kardec, de onde vem o meu nome. Pensando nisso, acho que meu ateísmo é mais existencial do que político, é uma dificuldade de lidar com a fé em coisas que saltam muito para fora das cercas da matéria, das possibilidades especulativas da ciência. Eu tenho fé em gente e no que elas podem fazer umas pelas outras, umas com as outras, por isso mantenho-me sempre aberto ao diálogo, sempre atento ao diverso, ao plural.

Hoje, saudavelmente, discutia sobre a questão “família” com um amigo evangélico, daqueles que não se sucumbiram à sanha dos pastores bolsonaristas. A família é o tema principal da pauta desses religiosos metidos na política. Refiro-me aqui àqueles líderes que embutem na fé e nos preceitos cristãos os seus interesses pessoais e ideológicos miseravelmente terrenos. Dizia eu ao meu amigo que em minha leiga leitura do Novo Testamento não encontrei o Cristo defendendo essa família nuclear sobre a qual os pastores querem legislar, ditando os costumes e os próprios desejos. Cristo desprezava essa estrutura, basta abrir a Bíblia e constatar. As poucas vezes que lembraram a ele sobre sua família nuclear, o filho de Maria respondeu como fez em Lucas (8: 19-21) que a família dele era o povo, eram aqueles que estavam ali presentes com ele. A posição do nazareno está, portanto, em descompasso com esses cristãos a que especialmente me refiro e Cristo, se aparecesse por aqui, pareceria a eles mais um comunista do que um pastor de púlpito monetário e político.

Disse ao meu amigo evangélico que teologicamente via no Novo Testamento uma mudança radical de rumo, com relação ao Velho Testamento. Há nas velhas escrituras um deus vingativo, violento, bélico, chamado muitas vezes de Senhor dos Exércitos, que impõe o medo e vence castigando e dizimando, como um arcaico pai da horda; um deus que não se constrange em instigar seu fiel seguidor Abraão a matar o próprio filho como sinal de obediência (Gênesis, 22:1-7). Nessas escrituras, a família nuclear e extensa tem grande importância e é o lugar em que o pai rege com mão de ferro o grupo, o clã. A defesa do território e dos bens familiares motiva massacres, guerras e conflitos de toda natureza. O outro que não estiver sob a regência do pai, do líder da família, é o inimigo, o ímpio, aquele que não respeita o próprio deus, por isso deve ser banido ou eliminado.

Boa parte do que se lê nas velhas escrituras, desde o Pentateuco, pouco se parece com o cristianismo. Com as ressalvas de que é um conjunto de narrativas cheias de contradição, uma vez que foram compiladas ao longo da história, quase nada lá lembra o mandamento “amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus, 22:39). Esse mandamento, que funda a prática social de Jesus nos Evangelhos, institui o amor como base, embora seja um falso axioma. Ninguém ama o próximo como a si mesmo. Nem Jesus o fez. Jesus amou o próximo mais do que a ele mesmo, o que é sobrenatural. Nas escrituras, a sua imolação voluntária em benefício da humanidade é prova disso. Como a gente ouve desde criancinha: “Ele morreu para nos salvar”! Mas em que os Evangelhos rompem com os livros antigos? Exatamente na questão da irmandade. Nos textos bíblicos, os atos de Jesus são pelos irmãos. Ali, pelos gestos do Cristo, todos são irmãos, todos são iguais como filhos de deus. Não interessa a Jesus (é o que suas ações indicam) a vida material dos seres humanos, suas famílias, suas posses, seus costumes etc., por isso ele diz: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Marcos, 12:17). Assim, importa ao galileu que todos são obra de deus, importa o divino. Uma passagem de Lucas (9:59-62), lembrada pelo psicanalista Contardo Calligaris, no livro O sentido da vida, reforça o pouco valor despendido por Cristo à família nuclear. O discípulo pede ao Mestre para ir ao enterro do pai, antes de segui-lo e Jesus o adverte para não ir dizendo-lhe: deixe que os mortos enterrem seus mortos. A outro seguidor que quer se despedir da família ele contesta com o mesmo desprezo.

Em Mateus (10:34-39), a posição do personagem central dos Evangelhos é radical e não deixa dúvidas sobre o compromisso do cristianismo com o divino. Ali Jesus diz que não importa a paz entre pai, filho, mãe, filha, irmãos, noras… Ele sabe que a paz na família não implica o respeito a todos os seres humanos, que são a obra divina. A defesa que Cristo faz de prostitutas, leprosos, desvalidos é uma defesa indiscriminada da obra divina. Ele é intransigente com a profanação do divino. Por isso intervém em defesa da prostituta, por isso invade o templo tomado pelos vícios terrenos, por isso acode cegos e loucos endemoniados. A obra divina que são os humanos está acima da vida material, demasiado humana.

O que os pastores da sociedade do espetáculo de hoje, aqueles que tratam a fé como um negócio e a igreja como uma empresa, fazem é profanar o cristianismo naquilo que foi praticado pelo próprio Jesus, como muitos fizeram ao longo dos tempos. Nada do que esses pastores fazem lembra o cristianismo. Em suas mãos, os textos bíblicos são usados para incutir o medo e a culpa visando aumentar a receita da igreja. Para isso, se silenciam sobre o mais importante: os gestos fraternos e solidários do Jesus que protagoniza o Novo Testamento. Ao invés de exaltarem aquelas qualidades, se apegam apenas àquilo que reforça os seus interesses mundanos. Por isso, operam sempre – ao sabor das conveniências – uma mistura do que há de pior e mais anacrônico no Velho e no Novo Testamentos, como estratégia de dominação dos fiéis para uso político e financeiro. A contaminação do cristianismo, aquele inspirado nas ações do próprio Cristo, por essas práticas distorcidas, operadas por comerciantes da fé, é tão grave que obriga um ateu, filho de comunista, a denunciá-las, para o bem das crenças, para o bem de todos! Há braços!

Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia de Referência Thompson. Tradução de João Ferreira de Almeida.
CALLIGARIS, Contardo. O sentido da vida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

Alan Oliveira Machado é doutor em educação, linguista, psicanalista e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG)

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